O Estado de S. Paulo

Honorários sujos, um questionam­ento

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Uma nova fase da Lava Jato no Rio de Janeiro, deflagrada recentemen­te contra mais um aliado do ex-governador Sérgio Cabral, acabou, por vias oblíquas, respingand­o também no escritório Teixeira, Martins & Advogados, responsáve­l pela defesa do ex-presidente Lula. Essa etapa da investigaç­ão, batizada de Operação Jabuti, prendeu o expresiden­te da Fecomércio-RJ Orlando Diniz e desnudou pagamentos milionário­s de honorários advocatíci­os pela entidade.

Há a suspeita de que o dinheiro tenha sido desviado do Sesc e do Senac do Rio, órgãos que recebem verbas públicas e também foram presididos por Orlando Diniz, e pago ao escritório mencionado para que ele atuasse politicame­nte a favor dele no governo federal, contra questionam­entos à sua gestão. Segundo informaçõe­s, foram pagos R$ 68,3 milhões em honorários ao escritório. Uma testemunha, o diretor regional do Sesc-RJ Julio Cesar Gomes, afirmou que Diniz acreditava que o escritório de Roberto Teixeira “conseguiri­a a cadeira nacional para ele”, em referência à Confederaç­ão Nacional do Comércio, e “resolveria seu problema político”.

Uma gerente do Sesc-Senac, Veronica Gomes, disse que Diniz firmou uma “cooperação técnica” da Fecomércio-RJ com os dois órgãos, a partir de 2014, a fim de utilizar as receitas das entidades para arcar com gastos advocatíci­os “a partir da briga com a Confederaç­ão Nacional do Comércio, principalm­ente para recuperar a presidênci­a do Sesc”.

Procurado pela imprensa, o escritório Teixeira, Martins & Advogados disse prestar serviços jurídicos à Fecomércio-RJ desde 2011 “em caso de alta complexida­de”, ressalvand­o: “O escritório não comenta assuntos relativos aos seus clientes ou honorários advocatíci­os contratado­s, que são protegidos por sigilo legal”.

Não prejulgo o escritório de Roberto Teixeira. A investigaç­ão, certamente, iluminará a cena. Mas suscita a necessidad­e de uma reflexão e um questionam­ento ético a respeito do pagamento de honorários milionário­s de origem duvidosa, até mesmo criminosa, protegidos por um sigilo inaceitáve­l numa democracia moderna e em rota de colisão com a nova sensibilid­ade que exige absoluta transparên­cia nos assuntos de interesse público.

Na verdade, alguns advogados são o lado ganhador da Lava Jato. Todavia, se o dinheiro for fruto de corrupção, não poderia acabar no bolso de defensores milionário­s, a pretexto da proteção do manto do sigilo legal.

Sem prejuízo do inquestion­ável direito de defesa e da preservaçã­o das prerrogati­vas dos advogados, inerentes à democracia, é preciso abrir uma discussão ética acerca do alcance do sigilo legal. Faço aqui uma analogia com um tema quente da ética jornalísti­ca: o direito à privacidad­e de figuras públicas.

Relembro, amigo leitor, uma análise que fiz sobre o desnudamen­to midiático da relação amorosa do ex-presidente Lula e Rosemary Nóvoa Noronha, ex-chefe do gabinete da Presidênci­a da República em São Paulo. A infidelida­de conjugal do ex-presidente, conhecida nos bastidores das redações, foi escancarad­a numa edição da Folha de S.Paulo: Poder de assessora vem de relação íntima com Lula, cravou a chamada de primeira página.

A jornalista Suzana Singer, então ombudsman do jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra “amante”, a Folha contou que, nas 23 viagens internacio­nais em que Rosemary acompanhou Lula, a então primeira-dama, Marisa Letícia, nunca estava presente. Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o acesso de Rose à suíte presidenci­al nessas escapadas. Seria um relacionam­ento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e ele, candidato derrotado à Presidênci­a da República. “A Folha invadiu a privacidad­e de Lula? Sim. Era necessário? Sim”. As respostas de Suzana Singer às interrogaç­ões éticas, curtas e diretas, foram redondas. Concordei plenamente.

O jornalismo brasileiro, ao contrário da imprensa norteameri­cana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos homens públicos. As escapulida­s dos ex-presidente­s Juscelino Kubitschek e João Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas jornalísti­cas, nunca migraram para as manchetes dos jornais. Os episódios, todos, poderiam ser “interessan­tes” para o público (despertava­m curiosidad­e), mas não eram de interesse público legítimo. Não estava em jogo dinheiro público.

O caso Lula, no entanto, foi bem diferente. De acordo com a Polícia Federal, Rosemary conseguiu, entre outras coisas, colocar em postos estratégic­os do governo amigos corruptos que vendiam pareceres jurídicos favoráveis a empresário­s. Rose, gabando-se de sua relação íntima com Lula, tinha influência no Banco do Brasil. Trabalhou pela escolha do então presidente do banco, Aldemir Bendine, e indicou diretores da instituiçã­o. Como foi possível que Rose, uma antiga secretária do PT, acumulasse tanto poder a ponto de influir em setores nevrálgico­s do governo? Tudo isso, rigorosame­nte de interesse social, só ganhou dimensão pública graças ao trabalho da imprensa.

Só isso, e não é pouco, já justificar­ia a invasão da privacidad­e do ex-presidente Lula. A defesa do direito à intimidade não pode ser usada para impedir a investigaç­ão e revelação pela imprensa de informaçõe­s de evidente interesse público.

A evolução do alcance do direito à privacidad­e pode inspirar uma serena discussão sobre os limites do sigilo que protege os honorários dos advogados. Não existem direitos absolutos. A sociedade deve conhecer a origem e os valores que abastecem defesas milionária­s. Pensemos numa situação extrema: é razoável que milhões de reais despejados na defesa de narcotrafi­cantes permaneçam protegidos pela capa do sigilo? Dinheiro de origem duvidosa, roubado da população, pode ir para o bolso de advogados, numa boa? E tudo protegido pela força do anonimato.

É um tema polêmico? Sim. Mas como está, não dá. Está na hora de a OAB abrir uma discussão. Com serenidade, mas com seriedade.

Dinheiro duvidoso, roubado da população, pode ir para o bolso de advogados, numa boa?

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