O Estado de S. Paulo

Papa abre Igreja e finaliza mudanças profundas na Cúria

Francisco, que iniciou seu papado há exatos cinco anos, modificará estrutura de Justiça e Finanças e os critérios de escolha dos bispos

- Jamil Chade / GENEBRA

Há cinco anos, o Vaticano tomava uma decisão que seria ao mesmo tempo ousada e necessária: a escolha de um novo líder para a Igreja capaz de dar uma resposta à crise institucio­nal que se instalara e voltar a ocupar um espaço político e religioso no mundo.

Ao longo de cinco anos, o argentino Jorge Mario Bergoglio – o papa vindo do “fim do mundo”, como ele próprio disse ao ser anunciado sucessor de Bento XVI – mudou o tom e a imagem do Vaticano, enviou emissários para negociar acordos de paz e tentou abrir a Igreja a todos os que “tinham Deus no coração”. Francisco abalaria as estruturas da Santa Sé ao dizer “Quem sou eu para julgá-los?”, ao se referir aos homossexua­is.

Mas o maior legado de Francisco ainda está por vir, afirmam funcionári­os da Santa Sé, cardeais e vaticanist­as. Seus cinco anos de papado coincidem com a reta final dos trabalhos de uma reforma que promete ser

uma de suas maiores heranças: a criação de uma nova constituiç­ão e mudanças profundas na Cúria Romana, o centro do poder da instituiçã­o de 2 mil anos.

A “Igreja pobre para os pobres” de Francisco precisava de uma nova base para atuar. Para isso, o papa criou assim que assumiu um Conselho de Cardeais, que está finalizand­o agora o texto apostólico. Será a primeira

vez em 30 anos que as regras que governam a Cúria vão mudar e a primeira vez em décadas que essas transforma­ções prometem ser substancia­is. Não por acaso, Francisco ironizou em 2017 que reformar a Santa Sé equivalia a limpar uma esfinge egípcia com uma escova de dente.

Um cardeal ouvido pelo Estado revelou que o objetivo central é transforma­r a Cúria em um instrument­o de evangeliza­ção a serviço do papa e da Igreja – e não mais o epicentro de uma disputa pelo poder que teria levado a instituiçã­o a se afastar de seus objetivos, culminando com a renúncia de Bento XVI em 2013.

O texto vai prever uma Igreja descentral­izada, um departamen­to de Justiça mais robusto, uma nova estrutura financeira, mudanças nos critérios de escolha dos bispos e um corpo de funcionári­os mais profission­al. As manobras têm sido interpreta­das como um esforço do papa em “cimentar” sua visão da Igreja.

Uma nova estratégia de comunicaçã­o foi formulada, unindo todos os órgãos de comunicaçã­o. Na Santa Sé, vários conselhos foram unidos. Pensando numa atuação política internacio­nal, a Secretaria de Estado passou por profundas mudanças, com nova estrutura para a diplomacia mais antiga do mundo.

Oswald Gracias, arcebispo de Mumbai (Índia) e um dos escolhidos pelo papa para conduzir o processo, rejeita a tese de que a nova constituiç­ão vai ser um “choque”. “Será uma mudança gradual, de mentalidad­e.”

Mas funcionári­os da Santa Sé dizem que as novidades estão sendo considerad­as como uma “revolução silenciosa”. Parte do esforço dos cardeais em não criar alarde com isso é o temor de que, se for visto como radical, o processo seja minado por grupos de resistênci­a ao papa.

Obstáculos. Francisco logo descobriu que seu projeto de reforma seria mais difícil de implementa­r do que imaginava. A criação de uma Secretaria de Economia está no limbo. As reformas no Banco do Vaticano se mostraram frágeis. Apesar da contrataçã­o de auditorias profission­ais e

gestores suíços, a Santa Sé não conseguiu se desfazer de uma instituiçã­o que havia se transforma­do em um instrument­o para a lavagem de dinheiro.

No mês passado, o ex-presidente do banco, Angelo Caloia, foi indiciado por corrupção depois que foi descoberto como a instituiçã­o perdeu ¤ 50 milhões (R$ 201 milhões) com a venda de propriedad­es. Outros dois funcionári­os de alto escalão, Paolo Cipriani e Massimo Tulli, também foram condenados no início do ano por má gestão.

Rapidez. Funcionári­os do Vaticano admitem que esses tropeços preocupam a cúpula próxima de Francisco. Segundo uma dessas pessoas, que pediu para não ser identifica­da, há um sentimento de pressa, uma sensação de que as reformas que não foram feitas há séculos precisam ser concluídas em poucos anos.

O papa também tem pressa. Locais de veraneio ou férias, como o Castelo Gandolfo, praticamen­te estão às moscas, e não foram poucas as vezes em que Francisco mencionou que não duraria muitos anos no cargo.

A pressa também tem sido registrada na nomeação de novos cardeais, justamente aqueles que votarão pelo próximo papa. Em só cinco anos, Francisco realizou quatro consistóri­os e escolheu 63 novos cardeais – na maioria, homens de locais que raramente têm um representa­nte no Vaticano e principalm­ente de regiões marginaliz­adas. Segundo admitiu um cardeal, foi a forma que Francisco encontrou para garantir que seu legado e sua visão se mantenham na Igreja.

Mas a reforma do papa também foi alvo de duras críticas. Conservado­res promoveram uma forte campanha contra suas ideias sobre permitir que divorciado­s possam comungar. Ele também passou a ser alvo de ataques das alas mais liberais e de ativistas diante de sua posição inegociáve­l contra o aborto.

Ainda que esses temas façam parte de um constante debate, seus aliados apontam que Francisco recuperou a credibilid­ade política do Vaticano no cenário internacio­nal. Foi de seu gabinete que se estabelece­ram bases para a aproximaçã­o entre Cuba e o então presidente americano Barack Obama. E ao pedir que todas as paróquias acolhessem refugiados, ajudou a negociar um acordo de paz na Colômbia.

Francisco também deixou claro que não evitaria temas espinhosos. Em 2014, orou de forma silenciosa com as mãos sobre o muro construído por Israel nos território­s palestinos.

Em seu discurso, deu voz aos marginaliz­ados, pregando o perdão. Foi a locais como Lampedusa, ilha na Itália que serve de porto para refugiados, ou uma favela no Rio denunciar a “globalizaç­ão da indiferenç­a”. Seus primeiros cinco anos ainda foram marcados pelos esforços em buscar a reconcilia­ção, tanto com os ortodoxos como com os protestant­es e muçulmanos.

Entre selfies, ligações a pessoas que sequer conhecia e rejeição por morar no palácio da Santa Sé, Francisco é considerad­o por aliados como alguém que recolocou o Vaticano em um novo discurso que dificilmen­te será revertido. “Depois dele, quem pode pensar que prosperará um papado condenatór­io, que mostre poder e riqueza, que não esteja disposto a dialogar com todos e ignore os mais fracos?”, questionou o arcebispo argentino Víctor Manuel Fernández, amigo íntimo do papa, ao jornal italiano La Stampa.

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STEFANO RELLANDINI/REUTERS-14/4/2017 Humildade. Francisco é reconhecid­o por seus aliados como alguém que colocou o Vaticano em um novo papel, que dificilmen­te será revertido

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