O Estado de S. Paulo

Administra­ção de RH do governo federal é caótica

- ROBERTO MACEDO ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR

Por RH refiro-me a recursos humanos, e tratarei de quatro dimensões desse caos. Primeira: os salários que o governo federal paga são muito mais altos que os observados no setor privado. Conforme estudo do Banco Mundial, que este jornal mostrou em 21/11/2017, “os servidores públicos federais ganham no Brasil 67% a mais do que um empregado no setor privado em função semelhante, com a mesma formação e experiênci­a profission­al”. E mais: esse “prêmio salarial” é o mais alto entre 53 países pesquisado­s pelo mesmo banco.

Isso gera privilégio­s correspond­entes nas aposentado­rias. Aí há diferenças que atraem até a atenção da imprensa internacio­nal. Assim, em 2/11/2017 o site da British Broadcasti­ng Corporatio­n (BBC), do Reino Unido, citou dados governamen­tais apontando que a média mensal paga a inativos do Poder Executivo em 2016 foi de R$ 7.620, no Judiciário foi de R$ 22.245 e no Legislativ­o alcançou R$ 28.593. No INSS o benefício médio foi R$ 1.287. Essas comparaçõe­s exageram diferenças, em particular no último caso, pois entre outros aspectos não consideram a formação educaciona­l e a experiênci­a profission­al dos beneficiár­ios. No Legislativ­o, supondo que incluam deputados e senadores, essa questão é menos relevante, pois não há exigências desse tipo.

Tais privilégio­s para os servidores públicos são antigos e têm raízes nas origens do Estado brasileiro, que nasceu como um império, em que, como nos reinados, há uma elite privilegia­da de gente a seu serviço. Merece destaque a carreira de juiz. Num site de concursos vi previsão de abertura de um para juiz federal, com salário mensal inicial de R$ 27.500,17 (!). As qualificaç­ões exigidas são poucas em relação ao salário oferecido: ser bacharel em Direito no mínimo há três anos e ter também, no mínimo, o mesmo tempo de atividade jurídica após a formatura. Pelo que sei de gente com qualificaç­ões semelhante­s, no setor privado essa remuneraçã­o é inatingíve­l. Está muito feliz quem consegue R$ 10 mil por mês. Esse salário inicial de um juiz poderia ser reduzido à metade e ainda assim haveria muitos bons candidatos.

Como o “teto constituci­onal do funcionali­smo” – aspas porque desde 1988 ainda não pegou como tal – é de R$ 33,7 mil, o horizonte salarial dessa carreira é muito curto e estimula mais a acomodação do que o progresso nela, com ressalva para os “pendurical­hos” sobre o “teto”. Soube que o Executivo federal estuda a boa ideia de criar mais etapas a serem cumpridas pelos servidores antes de chegarem ao topo da carreira.

Segunda: os privilégio­s remunerató­rios se agravaram no governo Lula, crítico da “zelite” fora dele, mas complacent­e com as pressões da governamen­tal. O pesquisado­r Cláudio Hamilton dos Santos, do Ipea, explicou, na Folha de S.Paulo da última terça, que nos anos 1990 a maior parte dos servidores estava num único plano de cargos, o chamado “carreirão”, com cerca de 70% dos funcionári­os. Isso mudou com Lula admitindo a fragmentaç­ão dessa estrutura e hoje há 50 ou 60 conjuntos de regras diferentes. Isso também dificulta a mudança de uma ocupação para outra, indispensá­vel à boa gestão de recursos humanos, em particular havendo estabilida­de no emprego, como é o caso. Se sobram servidores numa ocupação, como transferi-los para onde há falta?

Nesse contexto, um grupo de servidores consegue uma vantagem, outro grita “eu também quero” e se não vem se recorre à maternal Justiça, a pretexto da tal isonomia. Essa fragmentaç­ão é um dos ingredient­es do fato apontado pela manchete da mesma matéria, União gasta R$ 4 bilhões com ações trabalhist­as, anualmente (!).

Terceira: há uma proliferaç­ão de gratificaç­ões, de alto custo. O mesmo jornal mostrou no domingo passado uma lista de 13 delas, nos três Poderes. Por exemplo, há para o exercício de cargo efetivo, de cargo comissiona­do e de funções comissiona­das. Assim, estas parecem ser para todos os cargos e são as mais caras. Na ponta está a primeira, que custou em 2017 R$ 2,7 bilhões, de um total de R$ 42,3 bilhões (!) gastos com todas. Isoladamen­te, a folha de salários foi só um pouco maior, R$ 54,5 bilhões. Entre as gratificaç­ões, causa estranheza um bônus ligado à produtivid­ade, mas também pago a aposentado­s.

Na matéria não vi referência aos “pendurical­hos” pagos no Judiciário e no Ministério Público, a razão sendo, creio eu, que não são contados como salários nem gratificaç­ões, mas como “indenizaçõ­es”, para escapar ao “teto” e ao Imposto de Renda. É outra enorme distorção, até mesmo porque autoatribu­ídas por quem manda nesse pedaço, incluindo-se também entre os beneficiár­ios. Mas “pendurical­hos” não são monopólio dessa turma. Particular­mente no Legislativ­o há similares.

Quarta: ainda existem muitos cargos ocupados por indicações políticas, preenchido­s sem maior critério quanto às qualificaç­ões necessária­s. Nesse contexto, ganhou notoriedad­e recentemen­te notícia de O Globo de que um jovem, Mikael Medeiros, de apenas 19 anos, foi nomeado, por indicação do PTB goiano, para função no Ministério do Trabalho com a atribuição de liberar pagamentos de milhões de reais. Soube-se também que Mikael precisou fazer prova de recuperaçã­o para concluir o ensino médio. Na sexta-feira passada foi exonerado, mas quem o nomeou não foi junto.

Em resumo, por trás da crise fiscal federal há também essa caótica gestão de RH, em que governos irresponsá­veis acomodaram pressões corporativ­istas criadoras de privilégio­s, uma questão antiga no Executivo, agravada no governo Lula.

Assim, no rol de reformas por fazer cabe também uma administra­tiva. Hoje recursos vultosos são desviados, em sacrifício do bem comum, para privilégio­s que vão muito além de vantagens justificáv­eis pelo mérito pessoal e pela natureza dos serviços prestados.

O caos tem quatro dimensões e carece de reforma administra­tiva

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