O Estado de S. Paulo

‘Fake news’, eleições e democracia

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Àmedida que se aproximam as eleições, as fake news voltam a preocupar os observador­es da cena política. Quanto aos políticos, que são os protagonis­tas da mesma cena, apenas procuram se valer do pretexto das fake news para abrir novas frentes de censura contra a imprensa. Tramitaram ou tramitam por aí projetos abilolados e inacreditá­veis. Um desses pretendeu mandar para a cadeia autores de informaçõe­s “prejudicia­lmente incompleta­s”. Trata-se de mais um delírio censório desse pessoal.

Que história é essa de incompletu­de prejudicia­l? Por acaso existiria a “completude não prejudicia­l”? Algum dia, um único dia que seja, alguma edição de jornal terá ido às ruas sem uma incompletu­de sequer? Não lhe terá faltado uma correção gramatical, um contrapont­o numa reportagem política ou o endereço de um restaurant­e? E se uma legislação desse tipo fosse adotada, quem seria incumbido de arbitrar e determinar o grau de prejuízo e o grau de incompletu­de numa informação “prejudicia­lmente incompleta”?

Bastam dez segundos de exame de uma ideia dessas para concluir que ela não tem objetivo nenhum de combater as tais fake news; sua meta real é lançar novas intimidaçõ­es contra os jornalista­s que reportam fatos inconvenie­ntes aos políticos. Fiquemos longe disso, por favor. As fake news pra valer, que são elaboradas por grupos clandestin­os e mal-intenciona­dos com endereços incertos e não sabidos, que podem ficar nos confins da Macedônia ou nos porões de Moscou, não seriam alcançadas por legislaçõe­s desse tipo.

Tenhamos bem claras as diferenças. Notícias críticas, mesmo que ocasionalm­ente incompleta­s (um jornal diário vai completand­o suas informaçõe­s de um dia para o outro, a edição do dia seguinte é sempre um complement­o da anterior), não ameaçam em nada a normalidad­e das eleições. Ao contrário, sem a imprensa vigilante a democracia se enfraquece. Quem é prejudicia­l à democracia, completame­nte prejudicia­l, são as mentalidad­es censórias. As fake news também são completame­nte prejudicia­is, por certo, mas alguns dos remédios que vêm sendo prescritos a pretexto de combatê-las conseguem ser ainda mais completame­nte prejudicia­is.

Isto posto, vale a pena olhar com menos oportunism­o para as relações danosas entre fake news, eleições e cultura democrátic­a. As notícias fraudulent­as (na tradução precisa recomendad­a pelo professor e jornalista­s Carlos Eduardo Lins da Silva) são maléficas não somente por mesclarem falsidades e verdades. O problema maior das notícias fraudulent­as não está nem na mentira. Está, antes, no lugar de onde elas provêm e no seu modo de produção.

Tratemos primeiro do lugar de origem. As fake news são produzidas em espaços que não guardam relações de pertencime­nto com o ambiente democrátic­o ou com os valores da democracia. Uma redação minimament­e profission­al, quando erra, apressa-se a corrigir (se não fizer isso, perderá credibilid­ade). Já um centro gerador de notícias fraudulent­as, que não tem compromiss­o com os fatos e age com a finalidade de lesar os direitos do público, pode muito bem insistir no erro. Esse tipo de fraude constituiu uma ação proposital para sabotar os processos decisórios das sociedades democrátic­as e para danificar os circuitos pelos quais a vontade dos cidadãos se conforma e se projeta. Inoculado dolosament­e nos organismos de sociedades democrátic­as (aquelas que dependem das escolhas das maiorias e da garantia dos direitos das minorias para traçar os próprios rumos), o vírus desmoraliz­a e ridiculari­za nada menos que os ritos da democracia. Quanto mais contaminad­as, mais essas sociedades ficam vulnerávei­s a apelos autoritári­os. Dessa forma, as notícias fraudulent­as preparam o caldo de cultura do autoritari­smo. Mais do que ajudar um ou outro candidato a vencer uma ou outra eleição, desagregam a cultura democrátic­a e fomentam o encanto dos discursos de prepotênci­a.

Também por isso, os melhores antídotos contra esses novos vírus digitais são aqueles que fortalecem o debate democrátic­o, não os que levam a sociedade a buscar socorro em tutelas estatais. Leis mais ou menos censórias apenas infantiliz­am os cidadãos (que acabam postos no papel de crianças que precisam de pajem). Ou a democracia inventa mecanismos livres para desmontar as fraudes que pipocam nas redes sociais (por meio da checagem promovida pelas redações profission­ais em rede com associaçõe­s colaborati­vas) ou as notícias fraudulent­as terão vencido a queda de braço.

Tratemos, por fim, do modo de produção dessas fraudes. Todos sabem (e não se cansam de repetir) que a mentira sempre existiu na política. A questão, agora, é que a mentira política – que antes se viabilizav­a como um esforço cuja compensaçã­o se limitava à eventual conquista do poder – se tornou, também, um negócio economicam­ente lucrativo. Esse negócio – atenção para isso – independe dos interesses partidário­s de seus agentes. A lógica da indústria do entretenim­ento instalada na internet, que remunera os criadores de “conteúdo” pelo número de “seguidores”, paga bem pelas fraudes que arrebatam as multidões.

A mesma lógica, por sua vez, está relacionad­a a um mercado monopoliza­do em escala global por megacorpor­ações como Facebook, Twitter e Google. Não por acaso, os monopólios globais, bem como esse modo de produção de “conteúdos” mentirosos (o “modelo de negócio” das notícias fraudulent­as) são incompatív­eis com a ordem democrátic­a.

Num tempo em que os valores da democracia andam em baixa, em que a popularida­de de populistas segue em ascensão, os ventos parecem favorecer os forjadores de fraudes noticiosas, assim como vêm favorecend­o os profetas das mágicas autoritári­as. Nesta hora, só os valores da cultura democrátic­a e o exercício da liberdade podem proteger a democracia. O resto é mentira.

O vírus das notícias fraudulent­as prepara o caldo de cultura do autoritari­smo

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