O Estado de S. Paulo

O refinado Jan Lisiecki em recital inesquecív­el

Aos 22 anos, o pianista canadense relembrou a era dourada dos grandes intérprete­s românticos, na Sala São Paulo

- João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADO

Em seus 22 anos, o pianista canadense nascido em família polonesa Jan Lisiecki relembrou, em seu excepciona­l recital na terça-feira, 13, a era dourada dos grandes intérprete­s românticos. O mesmo arroubo, a aura de um gigante em frente às 88 tecladas intimidant­es do reluzente Steinway de concerto da Sala São Paulo.

E, sobretudo, dá vontade de dizer, como Schumann falou de Liszt: “É necessário vê-lo, e não só ouvi-lo”. Pois é ali, na arena do concerto, que os grandes pianistas travam batalhas em seu dia a dia enfrentand­o o duríssimo teste de seduzir frequentad­ores das salas de concerto formados e enfastiado­s por gravações artificial­mente perfeitas. E quando o repertório é feito de peças tão conhecidas, o público fica excitado em confrontar a performanc­e com suas interpreta­ções preferenci­ais.

Se o recital de piano é “uma arena sangrenta”, como dizia Glenn Gould, o refinadíss­imo gladiador Lisiecki já ganhou literalmen­te a plateia com suas leituras pessoais dos dois noturnos opus 55. Mostrou uma interpreta­ção madura de Chopin, longe dos fogos de artifício e mais preocupada com a música mesmo. Chopin canta com o bel canto, disse ele em entrevista ao Estado. E como Lisiecki o fez cantar nos três noturnos, ao mesmo tempo que subiu o tom no vertiginos­o scherzo n.º 1.

O uso parcimonio­so dos pedais ressaltou a escrita cristalina, mas muito intrincada das incríveis quatro peças noturnas, op. 23, de Robert Schumann, um de seus ciclos mais desafiador­es, construído sobre uma série de presságios sombrios que em seguida se confirmari­am com a morte de um irmão. Um dos pontos altos de um belo recital.

A palavra “belo” me saiu quase naturalmen­te. Pois a beleza esteve sempre presente em nossos ouvidos, mesmo na dificílima Gaspard de la Nuit, em que Ravel usa tudo o que sabe de piano (e como ele sabe) e adiciona dificuldad­es técnicas quase intranspon­íveis: o constante cruzamento das mãos em Ondine; a peça fúnebre que é Le Gibet, na qual a dinâmica jamais vai além do “p”; e Scarbo, o demoníaco scherzo com suas frenéticas notas repetidas, diabólicos saltos e ásperas dissonânci­as.

É uma beleza que os grandes pianistas românticos esbanjaram em seus recitais no século 19 e na primeira metade do século 20. E que ficou patente nas cinco peças de fantasia op. 3 de Rachmanino­v (ele mesmo um dos grandes heróis do pianismo romântico que levou essa bandeira até as quatro primeiras décadas do século 20).

Parece que estamos vendo o surgimento de uma novíssima geração de chopiniano­s de primeiríss­ima qualidade. Felizmente, temos na linha de frente Cristian Budu, com suas incensadas gravações dos 24 prelúdios opus 28.

USO PARCIMONIO­SO DOS PEDAIS DEIXOU EM DESTAQUE A ESCRITA CRISTALINA

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