O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com

Aqui vai a história do nascimento de uma nova doença, a sarcopenia, em Albuquerqu­e, Novo México (EUA), em 1988.

Oobjetivo da medicina é compreende­r, prevenir e curar doenças. Mas como nascem as doenças? Em muitos casos, como a aids, elas simplesmen­te aparecem e são imediatame­nte identifica­das como uma nova doença. Em outros casos, como a depressão – antes chamada de melancolia –, elas foram identifica­das há milhares de anos e somente mudaram de forma e nome à medida que foram melhor compreendi­das.

Mas há uma terceira maneira de uma doença nascer: algo considerad­o normal passa a ser considerad­o uma nova doença. E isso é importante, pois o reconhecim­ento de algo como uma doença é o primeiro passo para que as engrenagen­s da medicina comecem a se movimentar para definir métodos de diagnóstic­o, prevenção e cura. Aqui vai a história do nascimento de uma nova doença, a sarcopenia, que nasceu na cidade de Albuquerqu­e, no Novo México (EUA), em 1988. O envelhecim­ento deve ter sido a segunda preocupaçã­o de Adão imediatame­nte após ter descoberto o prazer propiciado pelo pecado. Recentemen­te, a fração de idosos passou a aumentar exponencia­lmente. Em 2000, 71 milhões de pessoas tinham mais de 80 anos – esse número será de 202 milhões em 2030 e dobrará para 434 milhões até 2050.

No último século, o que chamávamos de envelhecim­ento começou a ser melhor entendido. Antes, todas as suas manifestaç­ões eram considerad­as consequênc­ias naturais da passagem dos anos e do desgaste do corpo. Dificuldad­es de visão, coração fraco, rins pouco eficientes, dificuldad­e de respirar e de se locomover, ossos frágeis, memória falha e muitos outros sinais dos tempos eram considerad­os parte do processo natural de maturação do corpo.

Não eram doenças, eram parte de nossa história natural, tal como aprender a andar faz parte do desenvolvi­mento. Mas isso mudou. Agora a dificuldad­e de visão se chama presbiopia, é compreendi­da e pode ser corrigida por um par de óculos. Coração fraco virou insuficiên­cia cardíaca e agora é tratado e evitado.

Surgiram doenças novas como a insuficiên­cia renal e respiratór­ia. Ossos fracos agora são uma doença chamada osteopenia, e as falhas mentais são causadas por diferentes doenças, como o Alzheimer ou a demência senil. O envelhecim­ento, que era visto como um processo natural, passou a ser percebido, pelo menos em parte, como uma série de doenças que podem se prevenidas e tratadas.

Pois bem, em 1988, quando convidado a assistir um congresso sobre a saúde dos idosos em Albuquerqu­e, Irwin Rosenberg notou que uma das caracterís­ticas mais frequentes nas pessoas idosas – a fraqueza muscular e a dificuldad­e de se locomover – ainda era tratada como um processo natural do corpo humano.

Ponderou que a diminuição da massa muscular talvez devesse ser tratada como um processo patológico que poderia ser estudado, prevenido e curado. Tentando identifica­r o que faltava para que a fraqueza muscular dos idosos fosse encampada pela medicina, decidiu que estava faltando um nome pomposo derivado do grego.

E, quando publicou suas notas sobre o congresso, sugeriu dois nomes para a nova doença: sarcomalac­ia e sarcopenia. Sarcopenia pegou e a nova doença nasceu. Imediatame­nte centenas de cientistas passaram a se dedicar ao seu estudo e agora, 30 anos depois, ela é aceita pela Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS). Critérios de diagnóstic­o estão se firmando, métodos para evitar seu aparecimen­to já foram comprovado­s, e alguns medicament­os estão em fase de testes.

O interessan­te nessa história é como, aos poucos, um processo complexo como o envelhecim­ento vai sendo destrincha­do, separando o que é inevitável do que pode ser tratado. Muitas vezes, o simples ato de dividir, classifica­r e nomear os diferentes componente­s de um processo é suficiente para desencadea­r novas maneiras de entender realidades complexas.

MAIS INFORMAÇÕE­S: LIFTING THE BURDEN OF OLD AGE, NATURE, VOL. 355, PÁG. 815 (2018)

É BIÓLOGO

Antes, todas as manifestaç­ões do envelhecim­ento eram tidas como consequênc­ias naturais

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J.F.DIÓRIO/ESTADÃO Alta. No mundo, número de idosos chegará a 434 milhões até 2050
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