O Estado de S. Paulo

Teatro. A Serpente,

Lavínia Pannunzio dirige última peça escrita pelo autor sobre triângulo amoroso com irmãs e um pacto de morte

- Leandro Nunes

de Nelson Rodrigues, ganha montagem

Há muito tempo, a atriz Lis Reis desejava encarnar a desiludida e mortal Lígia, irmã de Guida em A Serpente, peça curta escrita por Nelson Rodrigues em 1978. Quando estrelou Camaradage­m, sob direção de Eduardo Tolentino, com o Grupo Tapa, uma chance já havia se perdido. O diretor montara o texto rodriguian­o em 1999, mas, mesmo assim, aconselhou a atriz a insistir na personagem-fetiche. “Acho que o fato de eu não ter irmã, mas cinco irmãos, me fez desejar interpreta­r essa jovem que faz um pacto de amor e morte com a irmã”, explica a atriz em cartaz no Teatro Artur Azevedo.

O convite para que Lavínia Pannunzio dirigisse a montagem veio a calhar para a também atriz que está em cartaz com Boca de Ouro, do mesmo autor. O espetáculo dirigido pelo mineiro Gabriel Villela teve temporada celebrada em São Paulo – a peça tem duas indicações para o Prêmio Shell –, mas, estranhame­nte, parece não ter agradado aos cariocas com a versão da gafieira, o berço do bicheiro conhecido como Drácula de Madureira, interpreta­do por Malvino Salvador. “A obra de Nelson sempre requer dedicação e um mergulho sem igual”, aponta Lavínia. “Quando soube que se tratava da sua última peça, topei sem medo. De alguma forma, em todas as suas obras, as personagen­s estão em uma trilha buscando o amor, mesmo que jamais encontrem, diante de tantos obstáculos, como a própria morte.”

Em A Serpente, o ninho dessa família está a arder de desejos não satisfeito­s. O pacto entre Lígia e Guida (Patricia Gordo) trata de aproximá-las cada vez mais da morte, o que leva a diretora a ambientar as ações diante de uma mesa fúnebre, que serve como sala de jantar e velório. “Elas já trazem consigo a viuvez e diante de um matrimônio infeliz flertam com a possibilid­ade de sanar todo o desejo com o suicídio”, afirma a diretora.

Nessa tragédia carioca, as irmãs se casaram no mesmo dia, mas Lígia conserva-se no desespero de não ter consumado o ato. Enquanto isso, o marido tem encontros regulares com a Negra das Ventas Triunfais, com quem exerce sua sexualidad­e livremente. O convite de Guida para que a irmã tenha relações com o cunhado acende a discussão familiar de ira e prazer. “São duas garotas que tiveram seus casamentos arranjados pelo pai e que vivem em um ambiente vigiado”, diz a diretora. A forma como Rodrigues assinala as insatisfaç­ões das personagem ecoa na casa e na montagem. “Guida tem um relacionam­ento silencioso e o sexo não lhe rende mais que alguns gemidos. No dia em que Lígia passa a ter conhecimen­to do sexo, ela grita, e grita mais alto que os gemidos da irmã. Essa descoberta muda a dinâmica de parceria entre elas.”

Para Lis, a peça consegue denunciar o moralismo das relações e a desilusão do matrimônio. “Mesmo sendo acusado de ser conservado­r e reacionári­o, Nelson nos ajuda a deslocar o pensamento e a refletir sobre temas obscuros.” A diretora acrescenta que o texto vai na contramão de retratar apenas o sofrimento de mulheres que não foram amadas como desejavam, mas denuncia o formato opressor no qual estão inseridas. “É muito além de uma briguinha entre irmãs pela exclusivid­ade de um homem. Elas se tornam vítimas quando a relação não oferece igualdade nos papéis de marido e mulher.”

A temporada gratuita do espetáculo se estende até maio, quando a peça passa a circular pelos teatros municipais, como o Cacilda Becker e o Alfredo Mesquita.

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LENISE PINHEIRO Desilusão. Patrícia Gordo e Lis Reis, as irmãs

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