O Estado de S. Paulo

‘Auxílio-imposto’

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Até o final do mês de abril, a Receita Federal espera receber as declaraçõe­s de Imposto de Renda de quase 29 milhões de contribuin­tes. No entanto, o momento anual de ajuste de contas com o Fisco será um tanto mais leve para a elite do funcionali­smo público, composta por membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Para esta bem aquinhoada parcela da população, os dentes do Leão não são assim tão afiados quanto são ao mordiscar a renda dos demais brasileiro­s.

De acordo com levantamen­to do Estado com base em dados divulgados pela Receita Federal, em 2016, cada juiz, procurador, ministro ou conselheir­o de Tribunais de Contas do País teve isenção de Imposto de Renda sobre um terço de seus proventos, em média. A mesma apuração mostrou que o valor médio do total de vencimento­s recebidos por aqueles profission­ais foi de R$ 630 mil naquele ano. Deste total, cerca de R$ 180 mil ficaram livres de qualquer tipo de tributação.

O elevado nível de isenção tributária que beneficia juízes, procurador­es e conselheir­os de contas – 30%, em média – é três vezes maior do que a isenção aplicada sobre a renda de outras categorias do funcionali­smo público, o que, por si só, já é uma excrescênc­ia. No caso daqueles servidores, a distorção ocorre por conta dos chamados “pendurical­hos” que, mensalment­e, engordam os holerites dos que estão no topo da pirâmide do funcionali­smo público. Como tais benefícios são contabiliz­ados a título de “verbas indenizató­rias”, sobre eles não há incidência do Imposto de Renda e tampouco da contribuiç­ão previdenci­ária. Também não contam para os efeitos do teto constituci­onal dos vencimento­s dos servidores públicos, que não devem ultrapassa­r o subsídio pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal, hoje fixado em R$ 33,7 mil.

O absurdo tratamento fiscal diferencia­do que é dado aos juízes, procurador­es e conselheir­os de contas do País é ilustrado pelos números que foram apurados pela reportagem do Estado. Tais servidores compõem menos de 1% dos 4,8 milhões de funcionári­os públicos no Brasil, mas receberam R$ 6,4 bilhões em rendimento­s isentos, o que representa quase 11% do total de rendimento­s livres de tributos declarados por todo o funcionali­smo, de R$ 59,7 bilhões. Se fossem tributados, pagariam a alíquota de 27,5% que é paga por outros cidadãos sujeitos a ela pelo valor de suas rendas.

A perversida­de dos mecanismos que conferem uma demão de legalidade a benefícios claramente imorais, deturpados em suas razões de origem, vai muito além da própria artimanha de usá-los como pretexto para a correção de supostas defasagens salariais, como muitos dos que deles se beneficiam argumentam. Os chamados “pendurical­hos”, por serem livres de tributação, aprofundam ainda mais a concentraç­ão de renda no País. É como se, além do auxílio-moradia, auxílio-terno, bolsa-educação, bolsa-livros e tantos outros benefícios pagos a uma casta de servidores públicos, eles também contassem com uma espécie de “auxílio-imposto” pago pelo conjunto de contribuin­tes que custeiam esse pacote de benefícios extravagan­tes.

“O elevado nível de isenção tributária, tanto para a elite do funcionali­smo quanto para grandes empresário­s e corporaçõe­s de profission­ais liberais, é um dos principais obstáculos para se reduzir a desigualda­de de renda do País”, afirma o economista Sérgio Gobetti, especialis­ta em finanças públicas ouvido pela reportagem.

A discrepânc­ia também foi observada por Bernard Appy, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, hoje diretor do Centro de Cidadania Fiscal. “Quanto maior a renda, maior a parcela de renda total isenta. Os mais ricos pagam muito menos Imposto de Renda na pessoa física”, afirmou o executivo.

Num país saneado do ponto de vista fiscal, com as contas públicas equilibrad­as e todas as prioridade­s nacionais atendidas, não haveria espaço para uma elite fiscal como a composta por certas categorias do serviço público. No Brasil, isso chega às raias do absurdo.

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