O Estado de S. Paulo

Na Bolívia, a luta da tecnologia contra a censura

Governo boliviano usou de todas as ferramenta­s para censurar a imprensa, mas ainda não encontrou um jeito de controlar a internet

- HUMBERTO VACAFLOR / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Há alguns meses, na apresentaç­ão de um livro sobre meu trabalho como jornalista durante a guerrilha de Che Guevara, um colega me perguntou qual a diferença entre a censura que aplicavam os militares, em 1967, e a que agora existe nesta ditadura da Bolívia.

No livro, descrevi como um coronel do Exército tinha a tarefa, em Camiri, de revisar os textos que nós, os jornalista­s, escrevíamo­s sobre a guerrilha e pretendíam­os enviá-los para nossos meios de comunicaçã­o e locais de origem. A tecnologia da época era tão elementar que obrigava os jornalista­s a usar os únicos sistemas de comunicaçã­o disponívei­s, facilmente controlado­s pelas autoridade­s, neste caso militares.

A censura era um procedimen­to fácil. Se você quisesse que seu texto chegasse ao destino, teria de submetê-lo à censura. Então, com um lápis vermelho na mão, o soldado cancelava palavras, frases ou parágrafos inteiros. O que restava poderia ser transmitid­o, em primeiro lugar, através do sistema Morse. Depois, através de teletipos, o último avanço em tecnologia.

Comparando essa realidade com a de agora parece ser uma viagem no tempo, ao tempo das cavernas ou dos sinais de fumaça. Então, em resumo, a internet não existia. Se você quiser imaginar como era, eu o convido a fechar os olhos e pensar como era a vida sem a internet. E, principalm­ente, a vida de um jornalista.

Escolha. O colega que me fez essa pergunta queria saber, na realidade, qual tipo de censura que preferiria, a dos militares que lutavam contra Che ou a censura que aplica o governo do autodenomi­nado “processo de mudança”. Ele não me deu a opção de dizer que preferiria liberdade, não censura. Eu tive de escolher entre duas formas de censura.

Eu lhe disse que preferia a censura dos militares, primeiro porque era chamada assim, diretament­e e de frente: a censura. Não havia dissimulaç­ão. Nós, jornalista­s, não podíamos dizer ou escrever o que queríamos. Devíamos esperar pela aprovação dos militares.

É uma comparação muito difícil, porque abrange duas eras muito diferentes. Censurar quando os meios de comunicaçã­o são facilmente controláve­is e censurar quando há uma torrente descontrol­ada de meios de comunicaçã­o é quase como comparar duas eras geológicas.

Temos de admitir que a aplicação da censura à imprensa agora, em plena revolução da tecnologia da informação, é mais complicada. Se você pode enviar uma notícia do seu computador, ou uma foto do seu telefone, sem que exista a possibilid­ade de controles, presume-se que o trabalho de censura é mais difícil, quase impossível.

Nessas condições criadas pela nova tecnologia, se um governo tem a necessidad­e de censurar, controlar o que é divulgado pela mídia, deve ajustar muito bem seus instrument­os, usar a imaginação, descobrir como pode parar um rio de informaçõe­s incontrolá­veis. Como parar o movimento das nuvens?

Para encontrar essas respostas, o governo da Bolívia teve a vantagem de poder imitar o que fizeram os governos de sua tendência. O exemplo de Cuba não servia, pois a censura foi aplicada antes que ocorresse a revolução na tecnologia da informação. Mas havia o caso da Venezuela, onde os meios de comunicaçã­o eram controlado­s em pleno reinado da internet. Hugo Chávez mandava expropriar de casas a jornais, canais de TV e emissoras de rádio.

Na Bolívia, o procedimen­to foi diferente. A ideia, desde o início, era eliminar todo foco de crítica. O método escolhido resultou em uma combinação de atitudes ladinas, sobreposta­s, maliciosas que deveriam dar a impressão de que aqui não está acontecend­o nada.

A seguir, vou ensaiar uma classifica­ção dos métodos de censura aplicados por esse governo, começando com os meios convencion­ais, que são jornais, canais de TV e estações de rádio. A compra dos meios foi o primeiro instinto, um pouco desajeitad­o. Foram comprados o jornal La Razón e as TVs ATB e PAT. A julgar pelo que fizeram com eles, pode-se dizer que foi um impulso de sadismo.

Seguindo esse caminho, o governo descobriu que para tomar leite não é necessário comprar a vaca. E começou a usar armas astutas, que são sua vocação natural. Primeiro, não é necessário comprar todos os meios, se o que você precisa é controlar apenas o que difundem. Além disso, se você é um administra­dor muito ruim, é melhor parar de comprar.

A primeira arma foi a pressão, seja com ameaças aos interesses econômicos dos proprietár­ios, utilizando principalm­ente o SIN (Serviço de Impostos Nacionais) como arma.

A compra de uma porcentage­m de ações foi um segundo passo. O “comprador” oficial, um advogado, chegou um dia a dizer a um proprietár­io de um meio de comunicaçã­o de La Paz: “Não estamos mais comprando no setor de mídia, mas se você nos der a opção de nomear o diretor, podemos dar publicidad­e oficial para que você tenha uma boa renda”. Eles descobrira­m que a administra­ção de publicidad­e oficial era uma arma para aplicar a censura.

Então, o governo chegou à sutileza de propor a compra de suplemento­s e de espaços em TV ou rádio, pelos quais paga muito dinheiro. E assim você ganha o direito de censurar, afastar colunistas ou reduzir suas publicaçõe­s. O meio, grato, se rende. Também há o método da lista negra. Existem personagen­s políticos e jornalista­s cuja presença é totalmente proibida na mídia submetida ao sistema de censura.

E existe a arma da “Justiça”. Passa-se por cima da Lei de Imprensa e se conduz processos civis ou penais contra jornalista­s críticos. Até aí chegou a capacidade do governo de controlar os meios convencion­ais de comunicaçã­o.

Para a mídia não convencion­al, para os modernos, para os rios de informação que circulam na internet, o governo não tem respostas. Ele contratou especialis­tas estrangeir­os para fazer uma “guerra” nas redes sociais. Mas sua aptidão para ser dissimulad­o não lhe serve. Nessa área, o governo não pode comprar, ameaçar ou censurar. Nós, jornalista­s, podemos gritar: a tecnologia nos libertará.

É VENCEDOR DO PRÊMIO LIBERTAD DE JORNALISMO NA BOLÍVIA, EM 2016, E MEMBRO DO FORO IBEROAMÉRI­CA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil