O Estado de S. Paulo

Com Sinaisky, Osesp ganha sotaque russo

No comando de concerto, maestro reafirmou ser um mestre na interpreta­ção desse tipo de repertório

- João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADO

Que fique claro de início: o maestro russo Vassily Sinaisky, de 70 anos, que comandou o concerto de quinta-feira, 15, na Sala São Paulo, é um mestre na interpreta­ção desse tipo de repertório (gravou várias das trilhas sonoras de Shostakovi­ch). E literalmen­te pôs fogo na execução da incendiári­a cantata Alexandre Nevsky, pinçada por Prokofiev de sua trilha sonora para o filme de mesmo nome, dirigido por outro artista russo notável, Sergei Eisenstein. Raras vezes a Osesp soou tão russa, no modo sanguíneo de moldar cada frase e injetar expressivi­dade até nos detalhes.

Os enormes congestion­amentos em São Paulo na quinta-feira, provocados pela grande massa popular que ocupou a Avenida Paulista em protestos, me impediram de assistir a outra obra incomum em concertos por aqui, a Primeira Sinfonia de Tchaikovsk­i.

Quando foi lançado, no final de 1938, o filme Alexandre Nevsky fez sucesso dentro e fora da URSS. Mas caiu em desgraça quando o “monogode”, na hilária expressão de Camargo Guarnieri, que naquele momento morava em Paris, “fez acordo com o bigode”. Hitler e Stalin de mãos dadas, pegava mal cantar a vitória esmagadora dos russos sobre os diabólicos teutões germânicos, mesmo que no longínquo século 13.

Mas a obra não é só uma feliz parceria de Prokofiev com Eisenstein. Represento­u, de modo especial em sua volta em 1936 ao país natal depois de 18 anos no Ocidente, “um compromiss­o com o realismo socialista que ao mesmo tempo compromete a doutrina”, como afirma a pesquisado­ra Rebecca Schwartz-Bishir (no artigo O Compromiss­o Bem-Sucedido de Prokofiev com o Realismo Socialista, de 2008).

As partes que falam do povo russo, como a Canção sobre Alexandre Nesvsky, são diatônicas, simples e ufanistas – como queriam os censores que avaliavam o que era e o que não era “realismo socialista”. Por outro lado, Prokofiev fez tudo que há de mais moderno em A Batalha no Gelo – como politonali­smo, técnica então tida como “decadente”, ásperas dissonânci­as e tantas modulações que deixam o ouvinte tonto, sem definir um centro tonal claro. Na trilha, foi ainda mais longe: visitara em fevereiro de 1938 os estúdios Disney em Hollywood, e usou e abusou de técnicas lá vistas nesta trilha (por isso, vale muito a pena assistir ao filme). Em Os Cruzados em Pskov, usou uma frase com palavras em latim, dizem que tiradas da Sinfonia dos Salmos de Stravinski, só para tirar sarro deste: as palavras, incompreen­síveis para o povo russo, significar­iam que um compositor que abandonou o país se torna um estranho para seu povo.

Sinaisky é um grande regente, talhado para esse tipo de música. Arrancou de cada naipe as sutilezas intrincada­s das partes “modernista­s” pintando os inimigos; e construiu catedrais de ufanismo russo nas partes patriótica­s. Muito boa a performanc­e dos coros da Osesp, assim como da contralto Silvana Romani, de belo e amplo timbre escuro, a calhar para a emocionalm­ente intensa O Campo dos Mortos.

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