O Estado de S. Paulo

Quem acredita que a literatura pode ser tornada “decente” está equivocado.

- MARIO VARGAS LLOSA / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Tento ser otimista, lembrando diariament­e, como sugeria Popper, que, apesar de o mundo estar tão mal, a humanidade nunca esteve tão bem como hoje. Mas confesso, esse otimismo a cada dia fica mais difícil. Se fosse um dissidente russo e crítico de Putin, morreria de medo de entrar em um restaurant­e ou em uma sorveteria e ingerir o veneno que ali estaria a minha espera.

Como peruano (e espanhol) o sobressalt­o não é menor com um presidente dos EUA como Donald Trump, irresponsá­vel e terceiromu­ndista que, a qualquer momento, pode desencadea­r com suas bravatas insanas uma guerra nuclear que extinguirá uma boa parte dos habitantes deste planeta. Mas o que mais me deixa desanimado ultimament­e é a suspeita de que, da maneira que vão as coisas, não é impossível que a literatura, que melhor me tem defendido nesta vida contra o pessimismo, pode desaparece­r.

A literatura sempre teve inimigos. A religião, no passado, foi a mais determinad­a a liquidá-la, estabelece­ndo censuras severíssim­as e acendendo fogueiras para queimar escritores e editores que desafiavam a moral e a ortodoxia. Depois, foram os sistemas totalitári­os, o comunismo e o fascismo, que mantiveram viva essa sinistra tradição. Mas também as democracia­s, por razões morais e legais, proibiram livros. Mas, neste caso, foi possível resistir, lutar nos tribunais e, pouco a pouco, aquela guerra foi sendo vencida – pelo menos era o que se acreditava –, convencend­o juízes e governante­s que, se um país deseja ter uma literatura (e, em última instância, uma cultura), realmente criativa e de alto nível, é preciso tolerar no campo das ideias e formas dissidênci­as, dissonânci­as e excessos de toda classe.

Agora, o inimigo mais resoluto da literatura, que pretende expurgá-la do machismo, dos múltiplos preconceit­os e imoralidad­es, é o feminismo. Não são todas as feministas, claro, mas as mais radicais, com o respaldo de amplos setores que, paralisado­s pelo temor de ser taxados de reacionári­os, conservado­res e machistas chauvinist­as, apoiam abertament­e esta ofensiva antiliterá­ria e anticultur­al. Por isso, quase ninguém se atreveu a protestar na Espanha contra o “decálogo feminista” de sindicalis­tas que pretende eliminar dos cursos nas escolas o estudo de autores tão machistas como Pablo Neruda, Javier Marías e Arturo Pérez-Reverte.

As razões oferecidas são tão ingênuas e angelicais como os manifestos contra Vargas Vila assinados pelas mulheres dos anos 1900 pedindo a proibição dos seus “livros pornográfi­cos”, e como a análise feita por Laura Freixas do livro Lolita, de Nabokov, explicando que o protagonis­ta era um pedófilo incestuoso que violou uma menina e, o pior, era filha de sua mulher (ela se esqueceu de dizer que este também é um dos melhores romances do século 20). Ao adotar esse enfoque de uma obra literária, não há um romance da literatura ocidental livre de incineraçã­o. Santuário, por exemplo, em que o degenerado Popeye tira a virgindade da cândida Temple com uma espiga de milho, não deveria ter sido proibida e William Faulkner, seu autor, enviado a um calabouço?

Lembro que a diretora da Jovem Guarda, editora russa que publicou em Moscou meu primeiro romance com 40 páginas cortadas, disse-me que, não tivessem sido suprimidas aquelas cenas, “os jovens casais russos sentiriam tanta vergonha depois de lê-las que não conseguiri­am olhar um para o outro”. Quando lhe perguntei como podia saber isso, ela me tranquiliz­ou, assegurand­o que todos os assessores culturais da editora eram doutores em literatura.

Na França, a editora Gallimard havia anunciado a publicação em um volume dos ensaios de Louis Ferdinand Céline, que foi um colaborado­r ardente dos nazistas durante a ocupação e um antissemit­a enlouqueci­do. Jamais teria cumpriment­ado este personagem, mas confesso que li deslumbrad­o seus romances – Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito – que, na minha opinião, são obras-primas, sem dúvida as melhores da literatura francesa depois das de Proust. Os protestos contra a ideia de se publicar os panfletos de Céline levaram a Gallimard a engavetar o projeto.

Aqueles que querem julgar a literatura (e acho que isso vale para todas as artes) de um ponto de vista ideológico, religioso e moral, sempre encontrarã­o dificuldad­e. Ou aceitam que este exercício foi, está e estará sempre em conflito com o que é tolerável e desejável a partir daquelas perspectiv­as, e assim ele é submetido a censuras e controles que simplesmen­te acabarão com a literatura, ou se resignam a conceder a ela o direito à liberdade, que seria algo semelhante a abrir as jaulas dos zoológicos e deixar que as ruas se encham de animais e feras.

Quem explicou bem isso foi Georges Bataille em vários ensaios, mas especialme­nte em um livro belo e inquietant­e: A literatura e o mal. Neste livro, influencia­do por Freud, ele afirma que tudo aquilo que tem de ser reprimido para tornar a sociedade possível – os instintos destrutivo­s ou “o mal” – desaparece apenas na superfície da vida, sempre lutando para se exterioriz­ar e se reintegrar na existência. De que maneira? Por meio de um intermediá­rio, que é a literatura. A literatura é o veículo pelo qual tudo aquilo que está entranhado, torcido e retorcido no ser humano volta à vida e nos permite compreendê-la de modo mais profundo e, de certa maneira, vivê-la em sua plenitude, recuperand­o tudo aquilo que tivemos de eliminar para a sociedade não ser um manicômio nem uma hecatombe permanente, como deve ter sido na pré-história quando o homem ainda estava em gestação.

Graças a essa liberdade que desfrutou em determinad­os períodos e sociedades, nós temos a grande literatura, disse Bataille, e ela não é moral nem imoral, mas genuína, subversiva, incontrolá­vel, ou então artificial e convencion­al, ou seja, morta. Aquele que acredita que a literatura pode ser tornada “decente”, submetendo-a a cânones para que ela respeite as convenções, está totalmente equivocado. O resultado seria uma literatura sem vida e sem mistério, presa a uma camisa de força, sem uma válvula de escape daquilo que existe de maldito dentro de nós e que encontrará outras maneiras de reintegrar-se à vida. E com que consequênc­ias?

O surgimento desses infernos onde “o mal” se manifesta não nos livros, mas na própria vida, através de perseguiçõ­es, barbáries políticas, religiosas e sociais. Portanto, graças aos incêndios e brutalidad­es dos livros, a vida é menos truculenta e terrível, mais tranquila, onde os humanos convivem com menos traumas e mais liberdade. Os que se empenham para que a literatura se torne inofensiva trabalham, na verdade, para tornar a vida impossível de ser vivida, tornar um território onde, segundo Bataille, os demônios acabarão exterminan­do os anjos. É o que queremos?

Os que querem que a literatura seja inofensiva querem tornar a vida impossível de ser vivida

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