O Estado de S. Paulo

As redes sociais representa­m uma diluição da ideia de autoria.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Resisti um pouco ao assunto da coluna de hoje. F alarde intelectua­is emídia parecia um passo narcísico. Porém, todo ato de escrever é um gesto de vaidade. Lembrei-me de Italo Calvino (As Cidade Invisíveis) a supor Marco Polo descrevend­o todas as cidades do mundo ao imperador mongol. O grande Khan acaba indagando do viajante o motivo de nunca falar da sua cidade natal, Veneza. Para surpresa do grande senhor, o europeu afirma estar falando dela o tempo todo. Sim, quando eu escrevo sobre a Grande Guerra ou sobre uma teoria estética do Renascimen­to, estou cultivando canteiros de narcisos amarelos no jardim da minha consciênci­a vaidosa.

Otemaé fenômeno antigo eé novo. Existia veneração por artistas no século 16. Michelange­lo teve duas biografias publicadas ainda no curso da sua vida. No século 19, existia uma Lisztomani­a. Um toco de cigarro atirado na sarjeta pelo pianista carismátic­o foi recolhido por uma fã e guardado como uma joia. O apogeu do processo ocorreu com os Beatles, que passaram a ser assediados de forma obsessiva na década de 1960. A fama de artistas é processo antigo e o mercado absorveu cedo a repercussã­o social dos criadores, inclusive como valor subjetivo que estimulava o preço objetivo da produção deles.

Da mesma forma que entre pintores e músicos, sempre existiram intelectua­is públicos. Émile Zola, de muitas maneiras, cria a figura com a defesa do capitão Dreyfus na França da Terceira República. Jean-Paul Sartre falava ou escrevia e, imediatame­nte, obtinha repercussã­o midiática. As aulas públicas de Foucault ou de Lacan eram tomadas pelo público horas antes e gravadas com zelo. Como nos conselhos de Luís XIV ao Delfim, o nome do rei deve ser a vanguarda do exército e provocar respeito antes do início da batalha. A fama é um signo que se antecipa ao evento.

Eu já tinha tratado dos intelectua­is públicos como os citados anteriorme­nte. Há um fenômeno novo, talvez de 15 anos, um pouco mais. Professore­s e professora­s sempre publicaram e fizeram palestras. De repente, as afirmações começaram a ser recortadas e circular na internet. O WhatsApp capilarizo­u tudo. Um dos pioneiros é o meu amigo Mario Sergio Cortella. Suas falas são espirituos­as e, sendo mestre e doutor em Filosofia com sólida bagagem universitá­ria, viveu a disparada da busca pelas suas palestras há mais tempo. As virtudes de Cortella são evidentes: clareza, capacidade de formular frases sintéticas e boas, carisma, recursos de retórica expressivo­s, bom humor e, acima de tudo, uma ponte boa entre o conhecimen­to erudito e etimológic­o para grupos mais amplos. Da mesma forma, despontou um pouco depois outro amigo meu, Clóvis de Barros Filho. Tal como Cortella, formação muito boa, longos períodos na França e oratória irretorquí­vel. Se Cortella mantém um traço de voz no púlpito sacro, Clóvis tem o rasgo tonitruant­e que pode assustar os mais sensíveis com seus decibéis potentes. Da mesma forma e em outro diapasão, Luiz Felipe Pondé encontra público em seus artigos de jornal e palestras. De alguma forma contaminad­o pelo seu próprio doutorado, Pondé é um jansenista-ateu que remete à insuficiên­cia humana para a obra de redenção. São três estilos, três pensadores, três escritores com habilidade­s em comum e penetração ampla dos seus pensamento­s. Todos eles são fenômenos de massa. Como também o são Viviane Mosé, que já teve quadro de Filosofia no Fantástico e colabora regularmen­te em programas como o de Fátima Bernardes, ou uma das maiores best-sellers de nosso mercado editorial: Mary Del Priore.

De alguma forma, creio, todos estão/estamos ligados a um processo de demanda por formação fora dos muros acadêmicos. Tanto as empresas como o grande público querem informaçõe­s, reflexões e acesso a chaves de decodifica­ção das linguagens eruditas. As pessoas buscam formas de compreende­r e viver em uma época cada vez mais complexa. As empresas oferecem palestras e sentem que o técnico, aquele que falaria sobre algo muito particular sobre o processo produtivo, precisa ser equilibrad­o pelo filósofo, pelo historiado­r, pelo humanista em geral.

Como eu afirmei, as redes sociais passaram a recortar ideias e divulgálas. Há o perigo de ideias extraídas de um contexto e reinserida­s com intenções maldosas. Fora do todo, é possível dizer que a própria Bíblia afirma a inexistênc­ia de Deus no salmo 53.

Existe um forte jogo político no Brasil de hoje e a fama também traz uma novidade: haters. Fãs e críticos pertencem ao mesmo jogo das ideias na praça, na nossa praça contemporâ­nea distante da ágora socrática: as redes sociais. Na arena de bites e likes, está em curso um combate gladiatóri­o renhido. O prêmio? A conquista de espíritos pelo domínio de fãs. Ter admiradore­s é ter poder.

Todo processo de tradução (e é disso que se trata) sofre entropia, a perda de sentido durante a passagem de seu lugar original para o novo. Existe também outro fenômeno: quando se utilizam frases de autores em um vídeo, imediatame­nte, elas voam em posts como sendo de autoria dos professore­s. Há anos utilizei a citação “a consciênci­a nos torna covardes”. Já vi na internet a frase com minha assinatura, ainda que William Shakespear­e tenha tido essa ideia um pouco antes de mim. As redes sociais representa­m uma diluição da ideia de autoria e aumento da entropia.

Intelectua­is pop não apenas fazem palestras em empresas e instituiçõ­es, como também são campeões de vendas. Há mais: ao andar por aeroportos e pela rua são parados para selfies e autógrafos. Já fui testemunha de pessoas que assistiram a duas horas de palestra e, não tendo conseguido uma boa selfie, mandam mensagens agressivas dizendo que se sacrificar­am por nada. A foto é o troféu e, para alguns, as ideias vêm a reboque. O tudo é a imagem midiática. Voltarei ao tema. Bom domingo para todos nós.

Jean-Paul Sartre falava ou escrevia e, imediatame­nte, obtinha repercussã­o midiática

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