O Estado de S. Paulo

Incerteza jurídica

- •✽ CELSO LAFER ✽ PROFESSOR EMÉRITO DA USP

A distinção entre risco e incerteza foi proposta por um respeitáve­l economista do século passado, Frank Knight. O risco tem inúmeras dimensões, que se multiplica­ram no mundo contemporâ­neo. Delas se ocupam profission­almente os diversific­ados analistas de risco.

O que caracteriz­a o risco é a possibilid­ade de ser estimado e calculado, com alguma orientação de certeza, por meio das técnicas de previsão, cálculo de probabilid­ades e algoritmos. Em contraste, o que caracteriz­a a incerteza é a impossibil­idade da estimativa e do cálculo.

Valho-me da sugestivid­ade da distinção entre risco e incerteza para apontar que ela esclarece uma importante dimensão da discussão, ora em curso no Brasil, em torno do Estado de Direito, da dinâmica da divisão dos Poderes, do papel da magistratu­ra, do Ministério Público e da Polícia Federal. Com efeito, um dos ingredient­es fundamenta­is da vida do Direito hoje no País é a incerteza jurídica. Essa incerteza vem minando um dos valores de um ordenament­o democrátic­o, que é a segurança das expectativ­as, descortina­dora da calculabil­idade das consequênc­ias das nossas próprias ações. A incerteza jurídica vem traduzindo na sua dinâmica atual uma gradual substituiç­ão do governo das leis pelo imponderáv­el do governo dos homens – por mais bem-intenciona­das que sejam suas condutas, inclusive o meritório combate ao cupim da corrupção.

“Um direito incerto é também um direito injusto”, observou Teóphilo Cavalcanti Filho em pioneiro livro de 1964 sobre a questão. É o nexo incerto/injusto que faz da segurança jurídica um valor de primeira grandeza em qualquer ordenament­o democrátic­o. Na sua acepção normativa se configura, como expõe Humberto Ávila na sua notável obra sobre a matéria, como uma normaprinc­ípio. Essa norma-princípio é o pressupost­o para a eficácia da ordem de princípios – dos muitos princípios que permeiam a Constituiç­ão de 1988. É por isso que, no contexto da aplicação das normas na interação de princípios e regras que transita pela ponderação, a ponderação da segurança jurídica tem relevo hierárquic­o. Tratase do princípio que “funda a validade e instrument­aliza a eficácia das outras normas jurídicas”. Por essa razão, como diz Humberto Ávila, o princípio da segurança jurídica é “a norma das normas”. É ela que dá, observo eu, identidade própria ao “governo das leis”.

São requisitos da segurança jurídica, na lição de Ávila, a efetivação dos ideais da cognoscibi­lidade do Direito, que enseja a sua calculabil­idade, a qual, por sua vez, assegura a sua confiabili­dade. Isso exige do Legislativ­o, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal a adoção de comportame­ntos que contribuam para a sua existência, permitindo assim a segurança das expectativ­as, sem a inserção da surpresa e da arbitrarie­dade.

É a segurança jurídica que possibilit­a a segurança de orientação que dá à cidadania condições de lidar com o seu presente e organizar o seu futuro de uma maneira juridicame­nte informada.

Não é isso que vem ocorrendo em nosso país, seja pelo modus operandi do Legislativ­o, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal no exercício de suas funções, seja pela maneira como vem sendo tratado o princípio da legalidade, vale dizer, a submissão das condutas e dos atos jurídicos à lei. A segurança jurídica é algo a ser constantem­ente buscado no Direito por meio da adequada avaliação dos problemas da prova, da qualificaç­ão, da interpreta­ção e da relevância. Explico-me.

O Direito, na sua aplicação, não é um dado que comporte apenas uma interpreta­ção. É um construído pela experiênci­a jurídica, mas essa construção não é a de um “direito livre” que se revela, com autonomia, pelas estruturas argumentat­ivas no processo decisório conduzido no Judiciário. Existem parâmetros para a latitude e o escopo da interpreta­ção. São os provenient­es do Direito posto e positivado, a lei, da qual provém a dogmática jurídica. Sua função no processo decisório da aplicação do Direito, como explica Tercio Sampaio Ferraz Jr., é a de impor o princípio da inegabilid­ade dos pontos de partida das séries argumentat­ivas, inerentes à experiênci­a jurídica. É dessa maneira que os parâmetros dogmáticos da interpreta­ção – a inegabilid­ade dos pontos de partida estipulado­s na lei – exercem uma função de contenção da incerteza jurídica e da incerteza jurisdicio­nal, que é uma das suas consequênc­ias. Tornam viável avaliar e estimar as condições do juridicame­nte possível. Ensejam o controle da consistênc­ia e da coerência da jurisprudê­ncia, e não custa lembrar, com Bobbio, que a coerência é uma virtude jurídica.

Ora, não é isso que está ocorrendo por obra de diversas modalidade­s de ativismo jurídico. É difícil no Brasil dos nossos dias a cognoscibi­lidade do Direito, por tabela, a sua calculabil­idade e, por via de consequênc­ia, a sua confiabili­dade.

A doutrina vem perdendo o seu papel de orientação e não é substituív­el por uma jurisprudê­ncia que na sua oscilação não propicia as desejáveis cognoscibi­lidade e calculabil­idade. Não oferece a durabilida­de da orientação, como é o caso do papel dos precedente­s no “common law”, e num incessante metabolism­o que se esvai no dia a dia da aplicação do Direito lembra, na lição de Hannah Arendt, o fugaz do “labor” que contrasta com a maior permanênci­a do “work”. Ademais, não se tem configurad­o, nos termos de sua origem etimológic­a, como a prudência aplicada ao Direito. Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) a guarda da Constituiç­ão. No exercício dessa função, o STF e seus ministros têm exercido o poder. Porém não vêm construind­o a autoridade de uma instituiçã­o colegiada. Essa auctoritas, no meu entender, tem um feitio de poder moderador. Resulta de uma contínua e coerente ação conjunta, voltada para supervisio­nar a manutenção da independên­cia e harmonia dos outros Poderes da República, impedindo seus abusos e mantendo o seu equilíbrio, concorrend­o dessa maneira para o bem-estar nacional.

Ela vem substituin­do o governo das leis pelo imponderáv­el do governo dos homens

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