O Estado de S. Paulo

O caos ao redor

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES ✽ TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

Os sinais de alarme agora soam com estridênci­a e vêm das mais variadas partes: a democracia política, tal como a conhecemos, está submetida a tensões talvez inéditas, ameaçada por inimigos inesperado­s e considerad­a por muitos como incapaz de se expandir e garantir uma vida cívica à altura de suas promessas. A eleição de Donald Trump em 2016, mesmo descontado o fato não irrelevant­e de sua derrota no voto popular, como que acentuou brechas até então pouco percebidas: aqui e ali, vozes que se supunham definitiva­mente ultrapassa­das ou, quando muito, com vocação minoritári­a adquiriram novo fôlego e, como se tornou comum dizer a partir de então, passaram a amplificar o mal-estar dos “perdedores” da globalizaç­ão.

Na desorienta­ção não só política, mas sobretudo cultural, que nos marca a todos e encurta nossos horizontes, houve quem, à esquerda, saudasse a ascensão do novo presidente americano como um revés fatal para o neoliberal­ismo globalista, tal como, algum tempo antes, a queda do Muro de Berlim havia selado a sorte do socialismo real. O nativismo e o protecioni­smo econômico de Trump seriam uma estratégia a ser imitada, com as devidas alterações, pela esquerda dita soberanist­a, que pressupunh­a assim as fronteiras nacionais como as mais adequadas para a defesa da cidadania política e social. Nenhuma reminiscên­cia, nessa esquerda, do clássico internacio­nalismo do Manifesto marxiano, que cantava em prosa e verso a capacidade capitalist­a de arquivar provincian­ismos, dissolver barreiras nacionais e unificar, ainda que contradito­riamente, a sociedade dos homens e das coisas.

E talvez mais grave ainda: subestimav­a-se o impacto que a nova presidênci­a teria, como tem tido, sobre a democracia na América e, consequent­emente, em todo o mundo. De fato, as pulsões extremista­s que sustentara­m o triunfo de Trump, com sua carga de racismo, sexismo e xenofobia, inevitavel­mente produziria­m um efeito corrosivo sobre a coesão social. A polarizaçã­o destrutiva viria a se confirmar como o novo padrão de enfrentame­nto político, amplificad­o, ainda por cima, por “guerras de cultura” em desfavor da mais recente geração de direitos, ambientais e de gênero, que pouco a pouco abria caminho. Projetando-se para além dos Estados Unidos, o trumpismo reforçaria tendências francament­e reacionári­as um pouco por toda parte, como nos é dado ver até bem perto de nós, entre outras coisas, com a instrument­alização irresponsá­vel de valores familiares e religiosos.

Uma após outra, e já com exceções contadas, as democracia­s europeias entraram em sofrimento, arrastando nisso o extraordin­ário projeto da casa comum. A social-democracia alemã agora refaz sua aposta, não isenta de riscos, na grande coalizão com os democratas-cristãos de Angela Merkel, uma dirigente de exceção, como se viu no acolhiment­o dos fugitivos das guerras no Oriente Médio em 2015. Não fosse o fenômeno Emmanuel Macron, a repropor um “centro” que queremos ver ousado e renovador, a velha França de 1789 seria palco, hoje, de aventuras irresponsá­veis. E na Itália, país de rica tradição de esquerda, duas modalidade­s relativame­nte distintas de populismo, uma das quais de extrema direita – a Liga de Matteo Salvini –, amealharam os votos de expressiva maioria. Ainda que por ora não se saiba o que farão exatamente com o largo consenso obtido, trata-se de uma mudança de tal ordem que faz do notório Silvio Berlusconi um exemplo de “moderação”. E a esquerda, quer a reformista do Partido Democrátic­o, quer as formações radicais, terá de se reconstrui­r em condições críticas, com déficits programáti­cos e dificuldad­es de inserção, dada a mudança verdadeira­mente epocal das estruturas econômicas e sociais.

O ciclo da esquerda latinoamer­icana no poder não foi a luz no fim do túnel. A transição exemplar no Chile, com a passagem de bastão entre Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, entre o centro-esquerda e o centro-direita, é acontecime­nto a ser saudado efusivamen­te na perspectiv­a de uma regular democracia de alternânci­a. Processos muito diferentes entre si – eleições no Equador e na Argentina, impeachmen­t no Brasil – sofrem o estigma do “golpe”, palavra que se vulgariza no pensamento único de uma certa esquerda populista e autoritári­a, que, como mostra o caso chileno, está longe de ser a única possível. Na Bolívia, reeleições indefinida­s para sagrar o mesmo mandatário, ainda que contra o veredicto formal de um plebiscito, são justificad­as como expressão de respeito aos direitos humanos do mandatário: nada mais do que um acinte. E a infeliz Venezuela, à beira de tragédia humanitári­a, contribui para desonrar o conceito de esquerda aos olhos dos democratas de todos os matizes. A insanidade, com efeito, não se detém diante de limites ideológico­s. Será, ao contrário, uma das propriedad­es mais bem distribuíd­as entre dramas e atores de qualquer orientação.

A esquerda latino-americana, na floração mais recente, deu sua chancela à polarizaçã­o que destrói o terreno comum representa­do pelas democracia­s constituci­onais. Fugiu do tema crucial do centro político, apostando na contraposi­ção entre povo e “elites”, aí incluídas as modernas classes médias e as profissões liberais, que seriam reacionári­as por definição. Ou, então, considerou aquele tema de modo matreiro, acionando mecanismos de cooptação dos adversário­s/inimigos a partir do controle das alavancas estatais. Como mostrou o exemplo brasileiro, abdicou do papel histórico de renovação do sistema político, contribuin­do antes para sua deterioraç­ão e ruína.

Os sinais são múltiplos e contraditó­rios – e nem todos auguram bom desfecho. Na falta de uma gazua ideológica, só por tentativa e erro será possível lêlos. Em outras ocasiões de risco extremo, houve uma esquerda, inclusive comunista, que soube interpreta­r o mundo real e acorrer em defesa da civilizaçã­o. Só venceremos o caos ao redor se assim for também desta vez.

A esquerda abdicou da renovação do sistema político, contribuin­do para sua deterioraç­ão

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