O Estado de S. Paulo

Classes médias ressentida­s

- CELSO MING E-MAIL: CELSO.MING@ESTADAO.COM

Oavanço da direita populista nas eleições da Itália, o furor protecioni­sta do presidente Trump, as novas dificuldad­es da chanceler Angela Merkel em coordenar seu governo e, antes disso, o Brexit, o acirrament­o do movimento de independên­cia da Catalunha, a onda de ódio contra os imigrantes na Europa e nos Estados Unidos – esses e outros fenômenos da mesma natureza têm lá dinâmicas e explicaçõe­s próprias, mas são unificados por um fator comum: o cresciment­o do ressentime­nto entre as classes médias.

Ou seja, o cresciment­o do protecioni­smo no mundo não se restringe a movimentos de natureza comercial. Nem o furor contra os imigrantes no Hemisfério Norte se restringe a reação ao risco de perda de identidade cultural. Também tem de ser admitido que protecioni­smo e xenofobia reaparecem de tempos em tempos em algum canto do mundo ou em vários deles.

A novidade é que esta é a primeira vez em que tal reação acontece a partir das classes médias, as mesmas que as esquerdas preferem não levar em conta, baseadas no primarismo ideológico de que a pequena burguesia não tem voz própria, só reflete os interesses das classes dominantes.

Paradoxalm­ente, a maior parte desses movimentos defensivos acontece em reação ao cresciment­o das próprias classes médias em outros países, em especial na Ásia. O especialis­ta Homi Kharas concluiu, em trabalho publicado em 2017 pelo Brookings Institute, que as novas classes médias crescem no mundo à proporção de 140 milhões de pessoas por ano, o que dá mais de três Argentinas por ano. E este é um elefante, ou vários deles, que incomoda muita gente.

Foi a ascensão das populações antes excluídas do mercado de trabalho e de consumo, principalm­ente na China, que acelerou a produção de mercadoria­s a custos mais baixos. A exportação dessas mercadoria­s mais baratas a países mais avançados provocou a migração de indústrias inteiras a outras paragens, que foram atrás de custos mais baixos de produção. E, em consequênc­ia disso, o impacto sobre o salário e o emprego nos países industrial­izados tem sido enorme.

É por isso que faz sentido dizer que sempre que alguém compra um made in China está ajudando a dar emprego para um chinês e a desemprega­r um nacional. As massas do chamado Cinturão da Ferrugem nos Estados Unidos (Estados de Michigan, Pensilvâni­a, Ohio), que sofreram o impacto do aço muito mais barato produzido na China, se queixam de desamparo do Estado. Foram decisivas na eleição do presidente Donald Trump. Ou seja, o descontent­amento dessas classes médias desencanta­das ganhou impression­ante força política. São essas mesmas camadas que vêm mudando o jogo político na União Europeia, na Europa Oriental e na Grã-Bretanha.

A sensação de inseguranç­a em relação ao presente e ao futuro está sendo agravada pela intensific­ação do uso de tecnologia de informação e por novas arrumações do sistema produtivo, que também cortam custos e dispensam mão de obra. As relações de trabalho, tais como conhecidas até aqui, estão em rápida transforma­ção, como esta Coluna comentou em outras oportunida­des. Categorias inteiras estão ameaçadas ou já estão em declínio, como a dos comerciári­os, dos bancários, telefonist­as, taxistas e gráficos.

Além disso, na Europa industrial­izada, os Tesouros públicos estão esgotados e não dão mais conta do pagamento dos benefícios do estado de bem-estar social (seguro-desemprego, saúde e ensino básico, assistênci­a social).

A sensação dessas classes médias é a de que estão metendo a mão no prato delas ou de que vêm sendo enxotadas da mesa. Daí as manifestaç­ões de revolta, especialme­nte as de natureza política.

Como o cão que morde o pau que lhe foi atirado em vez de atacar quem o atirou, essas massas não veem as coisas com clareza, mordem quem está mais perto. Quem optou pelo Brexit tem a sensação de que o resto da Europa lhe suga o sangue, e que livrar-se de Bruxelas lhes devolverá o futuro, seja ele o que for. Mas não são capazes de entender que aquilo que propõem não melhora sua vida. Os eleitores que optam por uma linha ultranacio­nalista e de repúdio aos imigrantes imaginam que um governo protecioni­sta trará de volta as indústrias e lhes restituirá empregos, salários e benefícios.

Novos tempos, nossos tempos. E é preciso entendê-los. E entender a velocidade sem precedente­s em que essas coisas acontecem.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil