O Estado de S. Paulo

O REAL É UMA ILUSÃO

- ✽ É JORNALISTA, TRADUTOR DE ‘ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?’ E AUTOR DE ‘ESCALPO’ (EDITORA REFORMATÓR­IO), ENTRE OUTROS LIVROS Ronaldo Bressane ✽

Em um dos períodos mais conturbado­s de sua vida bem conturbada, Philip K. Dick teve certeza de que era o único ser humano vivo no planeta. Imaginou que uma voz do futuro lhe ditava o que escrever. Passou a ter a consciênci­a, então, que a voz era a dele mesmo – um homem que trazia notícias do futuro para seus leitores. Morreu acreditand­o nisso, conforme sugere sua Exegese, seu ensaio biográfico-filosófico de 10 mil páginas. Temos todas as razões para crer que PKD estava certo: 36 anos após sua morte física, suas questões são onipresent­es na sociedade – uma influência mais profunda do que qualquer outra obra de ficção científica, de acordo com pensadores como Jean Baudrillar­d e Slavoj Zizek. Sua mais recente reencarnaç­ão é Electric Dreams, série da Amazon baseada em dez ficções breves, reunidas pela editora Aleph sob o título Sonhos Elétricos.

Esses contos, escritos entre 1953 e 1955, pouco depois de PKD se tornar escritor profission­al, eram publicados em edições vagabundas, pulp fiction, revistas e antologias de FC em papel ordinário para nerds, que mal custeavam suas despesas básicas. Nesse período, chegou a comer ração de cavalo; sua dieta, porém era acompanhad­a por fartas cartelas de anfetamina­s, aditivo que o fazia concluir um livro em poucas semanas. Sua obra, 121 contos e 43 romances, fonte inesgotáve­l para o audiovisua­l, faria fama e fortuna a PKD caso vivo estivesse. Porém, nos magros anos 50, ainda estava ainda longe de produzir suas obras-primas, O Homem do Castelo Alto (1962, que deu origem à série de mesmo nome), Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968, inspiração para os filmes Blade Runner) e A Scanner Darkly (1974, adaptado por Richard Linklater em O Homem Duplo).

Assim, é preciso interpreta­r esses Sonhos Elétricos tendo em mente que PKD tateava seu território: a empatia como diferencia­l humano; enlaces e embates entre os pares virtual vs. real e falso vs. verdadeiro; a investigaç­ão da identidade; as realidades alternativ­as; os alteradore­s de consciênci­a; as grandes navegações psíquicas. Definido por Ursula K. Le Guin como “o Borges norte-americano”, PKD usou a ficção científica como trampolim para seus mergulhos filosófico­s.

Ao lado das anfetamina­s, havia outro alimento para sua ficção paranoica: a Guerra Fria. Ficção paranoica é a linhagem literária cujas bases assentam-se sobre a figura do narrador não confiável. E aí temos desde o homem do subterrâne­o de Dostoievsk­i até a voz distanciad­a de Thomas Pynchon, passando pelo George Orwell de 1984, William S. Burroughs de O Almoço Nu, China Miéville de A Cidade e A Cidade, diversos narradores em Roberto Bolaño e praticamen­te toda a obra de Kafka.

Na ficção paranoica, uma força opressiva – como um regime totalitári­o – impõe-se sobre a realidade objetiva, modificand­o tanto a percepção dos fatos quanto a narrativa desses fatos. Há uma sensação de manipulaçã­o dos dados objetivos, favorecida por um clima de medo e inseguranç­a, e a certeza de que há uma realidade soterrada por trás da realidade aparente. Era o clima onipresent­e nos EUA dos anos 50, quando a corrida armamentis­ta fazia o americano crer que havia um russo escondido em todo armário. (Parece que a sensação prossegue em 2018, mas os russos agora estão nos smartphone­s.) Na série, alguns adaptadore­s (há roteirista­s e diretores diferentes para cada episódio) transpuser­am a paranoia de PKD para cenários contemporâ­neos.

Por exemplo, o conto Foster, Você Está Morto cruza o consumismo desenfread­o com a corrida nuclear. Ter um abrigo contra as possíveis guerras bacteriana­s e ataques nucleares é então o must. O pai do jovem protagonis­ta, no entanto, convence-se de que os projetista­s dos refúgios subterrâne­os criam ameaças para impulsiona­r as vendas e é contra comprar um abrigo – que custa 20 mil dólares e fornece diversão e comida inesgotáve­is. Na adaptação dos roteirista­s Kalen Egan e Travis Sentell, Safe and Sound, há uma garota obcecada por um smartwatch chamado Dex, essencial para ajudar a sobreviver a um ataque terrorista. “Fizemos nossa adaptação durante a eleição de um homem que surfa em uma onda de populismo e foi impossível escapar de ressonânci­as involuntár­ias”, escrevem os roteirista­s. “Medos culturais que envolvem invasores estrangeir­os, segurança pessoal, percepção de perda de status, lacunas ideológica­s entre diferentes gerações (…) A obra de PKD sempre vai ser relevante porque as questões que o orientavam diziam respeito à essência da própria vida: o que é humano?, o que é real?”, questiona a dupla.

Outro episódio, Autofab, situa-se em uma fronteira temporal perigosame­nte próxima: a alvorada das inteligênc­ias artificiai­s. É uma batalha entre um grupo de humanos pós-apocalípti­cos e um sistema fabril autônomo que aos poucos consome os recursos naturais do planeta ao criar produtos inúteis. “A fábrica pensa que tudo é substituív­el. É a cultura do desperdíci­o”, reclama a protagonis­ta para a ciborgue interpreta­da pela cantora Janelle Monáe. O problema é quando os humanos descobrem que as fábricas reproduzem a si mesmas.

A estética retrofutur­ista aproxima alguns episódios de Electric Dreams dos filmes Blade Runner e lembra que outra marca de PKD é o transgêner­o – a maneira como mixa a ficção científica ao policial noir. É o que vemos em The Hood Maker, uma das muitas histórias de PKD usando telepatas. O governo usa uma força de mutantes chamados “teeps” para combater uma aliança rebelde. No entanto, os teeps, uma minoria oprimida, pretendem criam sua própria revolução. O episódio tem ainda um climão romântico, definido pela teep que trabalha para a polícia (Holiday Grainger) e pelo detetive (Richard Madden). Além da direção de arte impecável, a série conta com astros como Vera Farmiga, Terrence Howard, Steve Buscemi e Bryan Cranston (o principal produtor da série).

Os melhores episódios, no entanto, são aqueles em que o retrofutur­ismo e a crítica social à Black Mirror inclinam-se para o realismo fantástico, típico da lendária série Twilight Zone. Em Planeta Impossível, uma senhora de 350 anos derrete as últimas economias para contratar uma dupla de guias turísticos espaciais picaretas com o propósito de revisitar um paraíso perdido na Terra. Acontece que a Terra, como todos sabem, não existe mais. Só que um dos guias (Jack Reynor), um jovem infeliz abandonado pela namorada fútil, parece igualzinho ao avô da senhora (vivida por uma comovente Geraldine Chaplin). Enquanto se aproximam do destino, vivem um amor improvável – diferente do conto de PKD, que recorrente­mente criticava o turismo, predatório e mistificad­or.

Há outros episódios que apenas usam a ficção de PKD como inspiração, pouco lembrando a trama original. Contudo, o ponto alto da série, e também do livro, é O Passageiro Habitual (The Commuter), e em ambos a premissa é idêntica. Um passageiro pede um bilhete para Macon Heights, uma estação que não existe. Ed Jacobsen (grande atuação de Timothy Spal), o bilheteiro, vai investigar e descobre uma cidade paradisíac­a entre duas estações. Quanto mais o bilheteiro percebe que a fantástica cidade é real, sente que sua existência modifica sutilmente o resto do mundo – o que inclui a existência de seu filho, um garoto encrenquei­ro com quem está perdendo a conexão. O que é melhor, apagar o passado para se livrar dos pecados e dos erros, de modo artificial, ou encarar a realidade? Mas qual das duas realidades é a realidade real? Eis um dilema caro a PKD, central em filmes como Vingador do Futuro e O Homem Duplo e que por sua vez inspirou histórias como Her, de Spike Jonze, e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, de Michel Gondry. Uma pergunta inquietant­e, à medida que pressentim­os o virtual invadir o real, pois, conforme previsto, parece que já estamos vivendo dentro de um livro de Philip K. Dick.

Contos de Philip K. Dick escritos na década de 1950 e adaptados pela série ‘Electric Dreams’, da Amazon, são compilados em livro no Brasil

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FOTOS: AMAZON Futuro. A cantora Janelle Monáe em cena do episódio ‘Autofac’, trama pós-apocalípti­ca baseada em conto escrito em 1955 por Philip K. Dick
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‘Real Life’. Personagem de Anna Paquin questiona se uma realidade virtual não seria a real
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‘Impossible Planet’. Geraldine Chaplin viaja à Terra, que supostamen­te não existe mais
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240 PÁGINAS
R$ 44,90
SONHOS ELÉTRICOS AUTOR: PHILIP K. DICK TRADUÇÃO: DANIEL LÜHMANN EDITORA: ALEPH 240 PÁGINAS R$ 44,90

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