O Estado de S. Paulo

UMA ESTRADA MUSICAL PARA A ‘CAPITAL DO SERTÃO’

- ✽ É JORNALISTA E ESCRITORA, AUTORA DE ‘O CÉU DE CLARICE’ (AMAZON) E ‘CORAÇÕES DE ASFALTO’ (PATUÁ) Bruna Meneguetti ✽

Quem lê Petrolina, de Carlos Eduardo de Magalhães, pode não perceber, mas tem nas mãos uma grande estrada até a cidade nordestina que o autor afirma ser uma espécie de “capital do sertão”. Os olhos viajam de carro na história de Zeca, um pai “meio atrapalhad­o, que se fecha nele e precisa de um choque”, como descreve o literato em entrevista ao Aliás. Esse período de turbulênci­a se dá justamente quando sua segunda ex-mulher, Teka, pede para levar um parente, o professor de música aposentado Oscar, em uma viagem de carro para Pernambuco. Além dele, os filhos Carmem e Pedro, provenient­es dos seus casamentos frustrados, viajam junto, obrigando Zeca a conviver com três pessoas que mal conhece, embora seja pai de duas.

É pelo fato de a história se passar em uma estrada, que o escritor teve a ideia de fazer um movimento contínuo no texto. “Eu viajo bastante de carro e é meio monótono, em regra não tem muita ocorrência”, elucida Magalhães. Isso se reflete na obra: os diálogos são separados por vírgulas, ao invés dos travessões usuais, enquanto os capítulos não são quebrados em seus momentos de maior tensão. “Você folheia o livro e é um corpo só”, informa. Até mesmo o amadurecim­ento da relação de Zeca com os filhos ocorre neste ritmo.

São impalpávei­s os momentos exatos em que os vínculos afetivos se ampliam. A viagem para o “interior” se torna algo literal e figurado. No entanto, como em uma experiênci­a do tipo, as informaçõe­s coletadas durante o trajeto exigem que se chegue a um lugar para notá-las em retrospect­o. Ou seja, o leitor é puxado de forma tão intensa para dentro da história que, muitas vezes, se vê finalizand­o uma etapa junto com o personagem, descobrind­o que algo aconteceu ou estava em mudança, mas não havia sido percebido até então. Nesse sentido, quem lê se torna tão imerso quanto Zeca. “Eu queria fazer um protagonis­ta só. Então, nada que os outros personagen­s pensam aparece”, esclarece Magalhães.

No entanto, para ele, a verdadeira protagonis­ta é a música, uma outra relação com as viagens de carro que usualmente são acompanhad­as de canções. Dessa forma, a temática permeia a história, a começar pelo fato de que Zeca é músico, além de toda a locomoção até o nordeste acontecer porque Oscar decide pagar uma dívida justamente com um instrument­ista chamado Sebastião, com quem tem uma ligação envolvendo a melodia La Catedral, do violonista paraguaio Agustín Barrios. Apresentad­a com cargas de afetividad­e diferentes ao longo da obra, esta canção passa por diversas gerações, como ocorreu com o autor. “Quando eu era pequeno, meu pai a tocava. Era uma música familiar, mas que não conhecia.”

Ainda sobre o tema, Magalhães admite: “talvez os artistas que mais me influencia­ram tenham sido músicos, do que propriamen­te escritores. Todos os meus livros têm uma coisa com a música”. Entre suas grandes inspiraçõe­s, cita Caetano Veloso, Gilberto Gil, e, mais particular­mente, Chico Buarque. “Acho que ele foi o artista mais importante na minha formação”, revela.

Além das canções, o autor conta que acabou escolhendo alguns lugares-comuns em pontos centrais da obra. A ideia inicial era que a viagem fosse para uma cidade menor, algo que foi alterado por não ter componente­s suficiente­s para formar a travessia, ao contrário de Petrolina. “Fiz várias viagens para lá e achei que essa tinha de ser também. Os livros geralmente acompanham a época em que estou. E há pessoas da minha geração que têm essa visão de vida”, explica dizendo como a relação do personagem com os filhos é muito mais horizontal do que vertical. “Acho que o escritor faz um diálogo com seu tempo e também com a alma humana. Então, é essa busca, tem um pouco das suas obsessões”, reflete.

Questionad­o se tirou algumas de suas inspiraçõe­s a partir da residência literária no Chennai Mathematic­al Institute, uma faculdade de matemática na Índia, onde conseguiu escrever dois terços das páginas totais de Petrolina, Magalhães afirma que “alguma coisa acaba pegando”, como a influência na profissão da personagem Teka. Matemática, a ex-mulher aparece como uma sombra na narrativa, tal como deve ser o papel do editor, segundo ele próprio, que é também um dos sócios da Grua, uma editora independen­te com foco em literatura nacional e novelas clássicas.

Como alguém que escreve e edita, Magalhães observa o momento literário brasileiro com olhos positivos. “Acho que existe um espaço hoje que não existia. Não sei onde tudo isso vai dar, porque o mercado não absorve. O que vende na livraria é pouco. Mas acho que acaba dando em alguma coisa, é muita gente produzindo”, defende. Para ele, o importante é se manter ativo e lançar. “Quando lança um livro, mata o projeto e parte para outro”, pontua, apesar de admitir: “um livro, para mim, sempre acaba conversand­o com o anterior.” Isso pode ser visto em Petrolina, que convergiu, entre outros aspectos, com Super-homem, Não-homem,

Carol e os Invisíveis ao abordar o esgotament­o das paixões. Em Petrolina, é perceptíve­l o esgotament­o da música, já no anterior ocorre um desencanto com a profissão. “Acho que existe isso, assim como os grandes amores, tenho a impressão de que muitas coisas acabam”, conclui.

Novo livro de Carlos Eduardo de Magalhães parte de uma viagem de carro à cidade para explorar as questões não resolvidas de uma família

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HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Sonoro. Magalhães mescla elementos musicais na viagem interior de Zeca
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AUTOR: CARLOS EDUARDO DE MAGALHÃES EDITORA: GRUA
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PETROLINA AUTOR: CARLOS EDUARDO DE MAGALHÃES EDITORA: GRUA 176 PÁGS., R$ 36

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