O Estado de S. Paulo

O CINEMA DE UM PROFETA DA HERESIA

- Donny Correia ✽ ✽ É POETA, ENSAÍSTA, MESTRE E DOUTORANDO EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP. AUTOR DE, ENTRE OUTROS, 'CORPOCÁRCE­RE' E 'ZERO NAS VEIAS’

No 35.º aniversári­o da morte de Luis Buñuel (1900-1983), o controvers­o cineasta espanhol volta à baila. Primeiro, uma caixa com seis filmes restaurado­s, que oferecem um panorama de suas fases mexicana e francesa, lançada pela Versátil Home Video. Além disso, os curadores desse box, Fernando Brito e Raphael Cubakowics, ministrarã­o um curso gratuito sobre a poética do cineasta, na Casa Guilherme de Almeida, em 24 de março.

Relembrar Buñuel desperta uma questão prepondera­nte. Sua estética surrealist­a, radical à época, hoje não expressa meramente o que repousa nas quinas obscuras da inconsciên­cia. O cineasta se tornou profeta, se visto pela perspectiv­a de nosso tempo. Seu surrealism­o se tornou simbolismo de uma dita pós-modernidad­e e, ora, nos parece a representa­ção alegórica das esquizofrê­nicas instituiçõ­es contemporâ­neas.

O que esta caixa evidencia é a tríade recorrente que sustenta a fatura buñueliana: desejo, dor e morte. Basta uma observação rápida de seus primeiros três trabalhos. Um Cão Andaluz, parceria com Salvador Dalí, fora pensado de maneira a não evidenciar representa­ções simbólicas em nada que o espectador visse diante de si ao longo dos 20 minutos de duração da fita. As sequências deveriam ser um fim em si e não estabelece­r uma relação lógica, de inerência, em sua diegese. Pelo bem da pequena obra-prima, eles falharam. Cada plano é, justamente, uma representa­ção estanque dos impulsos primitivos que regem as paixões. Portanto, tornam-se metáforas ricas em leituras.

A Idade do Ouro amadurece esta tese, exibindo comentário­s visuais mais agressivos, obscenos e cínicos para denunciar uma burguesia falida, de psique recalcada e oprimida pelo excesso de devoção católica e ânsia por aparências. Em seguida, realizou o documentár­io Terra Sem Pão, inspirado nas memórias de sua juventude, vivida no vilarejo de Calanda, descrito pelo cineasta como uma vila medieval em pleno século 20. Por conta da fortuna que seu pai constituiu ao migrar para Cuba no final do século 19, o pequeno Luis viveu uma vida de fausto, sem se convencer, porém, que aquele ambiente era adequado para sua inquietaçã­o.

Nos anos 1940, depois de frustrada passagem pelo MoMA, se estabelece­u no México, onde, já com mais de 50 anos, depuraria seu projeto estético. É neste ponto que a caixa se destaca, já que empreende um voo panorâmico pelo que há de essencial para compreende­r no diretor.

A Morte Neste Jardim, talvez a menos conhecida entre as obras escolhidas, lida com as agruras da pobreza destacando a revolta de mineradore­s e como alguns personagen­s em fuga para uma suposta vida mais digna acabam por se autodestru­ir. Diário de uma Camareira apresenta os temas mais caros a Buñuel: a esposa frígida, o marido que caça animais e mulheres com a mesma sanha, o sogro depravado e o capataz truculento, sexualment­e obcecado pela heroína. A crítica aos predicados da burguesia tradiciona­lista junta-se a um ataque aberto à hipocrisia religiosa em Simão do Deserto.

Em dado momento, o estilita Simão devolve as mãos de um amputado, como por um passe de mágica. Exultante, sua primeira ação com os membros devolvidos por graça divina é um tapa na filha, que insiste em interrompê-lo enquanto ele se gaba aos desvalidos que buscam redenção.

Na França, Buñuel atingiu sua maturidade fílmica. Aos 70 anos, realizou uma espécie de releitura da Justine de Sade em Tristana, cujo surrealism­o age como um exame da perversão masculina pela opressão psíquica e sexual contra uma jovem desamparad­a. A Via Láctea é um road movie que acompanha a peregrinaç­ão de dois indivíduos pelo Caminho de Santiago enquanto encontram os mais absurdos personagen­s de religiosid­ade, no mínimo, duvidosa. Assistimos a toda sorte de escárnio e insulto contra o que diga respeito ao catolicism­o. Buñuel era categórico: “qualquer imposição é danosa, seja na política, seja na religião”.

Por fim, em O Fantasma da Liberdade percebemos outra marca na crítica do diretor, já explorada em O Anjo Exterminad­or e O Discreto Charme da

Burguesia, a impossibil­idade da satisfação de uma pulsão. Nos vários episódios independen­tes, os desejos mínimos não se realizam e as inversões de valores são representa­das por cenas que beiram o didatismo esdrúxulo, mas guardam uma mordaz apreciação de um mundo raso em constante degeneraçã­o. Destaca-se a cena em que um personagem se tranca no banheiro, semelhante a um mini refeitório, para comer. Na sala de jantar, convidados sentam-se em privadas e enojam-se ao falar em comida. Todas as situações expõem o declínio de uma civilidade ontologica­mente canhestra.

Hoje, tudo nos parece mais real e palpável do que o próprio Luis Buñuel, do alto dos 83 anos que tinha ao morrer, poderia supor. Para completar a edição, há farto material extra com documentár­ios e entrevista­s com ex-colaborado­res do cineasta.

Reunidos em uma caixa, seis filmes restaurado­s do cineasta surrealist­a espanhol Luis Buñuel, reunidos em um box, são lançados no País

 ?? VERSÁTIL HOME VIDEO ?? Sade. Catherine Deneuve em ‘Tristana’, espécie de releitura de Justine
VERSÁTIL HOME VIDEO Sade. Catherine Deneuve em ‘Tristana’, espécie de releitura de Justine
 ??  ?? DIRETOR: LUIS BUÑUEL EDITORA: VERSÁTIL HOME VIDEO 709 MINUTOS (6 FILMES COM EXTRAS E DOCUMENTÁR­IO) R$ 79,90
DIRETOR: LUIS BUÑUEL EDITORA: VERSÁTIL HOME VIDEO 709 MINUTOS (6 FILMES COM EXTRAS E DOCUMENTÁR­IO) R$ 79,90

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil