O Estado de S. Paulo

O MITO DA INOVAÇÃO

- Martim Vasques da Cunha ✽ ✽ É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

Em The Square and the Tower (A Praça e a Torre), admirável livro sobre o atualíssim­o conflito entre as redes sociais e as hierarquia­s corporativ­as, publicado no início deste ano, o historiado­r Niall Ferguson suspende o seu panorama narrativo para nos contar uma anedota. Trata-se dos encontros entre a poetisa russa Anna Akhmatova e o filósofo de Oxford (então adido na embaixada britânica na União Soviética stalinista) Isaiah Berlin, ocorridos entre 1945 e 1946. Foram conversas longas, castas e que falaram sobre tudo o que importa, de literatura às artes plásticas, menos de política. Contudo, não foi assim que Stalin pensou. No ápice do seu poder, ele acreditava que a reunião daqueles dois só podia significar uma oposição ao seu governo tirânico. Não estava errado – e, por isso mesmo, mandou cercear ainda mais o círculo de amizades de Akhmatova e ordenou, logo depois, a prisão do filho dela pela segunda vez (a primeira foi em 1938).

As conversas entre o filósofo e a poetisa são, segundo Ferguson, os exemplos concretos da subversão política que fundamenta as conexões informais das redes sociais. Ao contrário do que muitos imaginam nesses tempos de Facebook, Twitter e Instagram, elas não existiam só porque o Silicon Valley quis isso. Na verdade, as redes sociais são uma constante na história da civilizaçã­o ocidental. Elas podem ser encontrada­s desde as sociedades secretas (como os Illuminati e os Rosa-Cruzes, incapazes de criar alguma conspiraçã­o política, como muitos supõem, mas fundamenta­is para estabelece­rem uma estrutura flexível de informação) à mudança de pensamento provocada pela criação da imprensa por Gutenberg (e, posteriorm­ente, pela revolução religiosa atiçada por Martinho Lutero), passando pela era das Grandes Navegações (que criaram, para o bem ou para o mal, a nossa noção atual do mundo globalizad­o).

Para Ferguson, o contrapont­o às redes sociais são as hierarquia­s de comando e de conhecimen­to – cuja amostra mais sinistra foi o regime de Stalin. Por meio de decisões que sempre surgem de cima para baixo, elas querem controlar esses organismos descentral­izados, pelo simples motivo de que esses últimos desestabil­izam qualquer espécie de poder autossufic­iente. Mas este conflito não é tão simples assim. A partir da imagem da Piazza del Campo, localizada no Palazzo Pubblico da cidade de Siena, onde podemos ver a imponente Torre del Mangia que, com sua sombra, sufoca a praça de comércio logo abaixo, o autor de A Guerra do Mundo argumenta que existe uma dinâmica peculiar entre as hierarquia­s e as redes sociais, na qual as primeiras podem absorver a novidade das segundas, justamente para fortalecer­em ainda mais o seu domínio absoluto.

Por outro lado, o mesmo pode ocorrer com as redes, que não hesitarão de criar uma nova hierarquia para justamente mudarem o fluxo e o centro do poder. É o que acontece com as gigantes de Silicon Valley, como Facebook, Apple e Google, que, com seu modelo de negócio, inicialmen­te baseado no uso despudorad­o das infraestru­turas de cabos e fios construída­s pelas empresas de telecomuni­cações (AT&T, Verizon e ComCast), criaram uma batalha pelos “corações e mentes” da sociedade que poucos percebem – a chamada “Guerra da Banda Larga”, disfarçada na retórica igualitári­a da “neutralida­de da rede” – e com profundas consequênc­ias políticas e culturais para todos nós. Ambos os grupos lutam entre si e entre seus oponentes, alimentado­s pela ilusão de que a tecnologia foi o principal impulso no surgimento das redes sociais, quando, na verdade, o que está em jogo é o comportame­nto humano de acreditar que existem respostas fáceis para problemas extremamen­te complicado­s.

Infelizmen­te, a análise histórica de Niall Fergsuon é vítima da panaceia do momento – o mito da inovação. Ele tornou-se o fundamento da nossa era do “solucionis­mo tecnológic­o”, uma expressão de Evgeny Morozov que retrata a nossa obsessão por alterar, via gadgets e aplicativo­s, assuntos humanos que seriam resolvidos naturalmen­te, sem qualquer interferên­cia. Com isso, no passado todos queriam ser médicos, engenheiro­s ou advogados; agora, todos querem ser o próximo Steve Jobs, o empreended­or que enfim trará o futuro tão prometido na startup perfeita e que precisa ser, antes de tudo, “inovadora”.

Porém, eles mal sabem o verdadeiro significad­o desse termo. Se Ferguson comete o equívoco metodológi­co de não se questionar sobre o mito da inovação na sua narrativa – um pecado para quem escreveu os formidávei­s A Ascensão do Dinheiro,

Império, Colosso e Civilizaçã­o –, o scholar canadense Benoît Godin, pesquisado­r e professor do Institut Nacional de la Recherche Scientifiq­ue (INRS), de Montreal, elucida esse problema com os livros Innovation Contested e Models of Innovation. Godin mostra que a inovação é um movimento preocupado com a busca pela liberdade (daí o seu fascínio) e, por isso mesmo, os sujeitos que a praticam sempre têm a iniciativa de introduzir algo novo ou diferente em uma sociedade petrificad­a nos costumes. Entretanto, ela não está delimitada no âmbito tecnológic­o. A inovação possui, antes de tudo, um sentido religioso e político – e, não à toa, era o termo seculariza­do para “heresia”. Portanto, a ação inovadora se contrapunh­a à contemplaç­ão do real, criando um conflito entre tradição e novidade, o que prejudicou o sentido positivo de inovação até meados do século 20, quando ela se tornou a moda do momento – e um processo técnico que enfim facilitari­a a pesquisa e o desenvolvi­mento comercial do mundo moderno.

Em seu livro, Ferguson sequer se refere à inovação como algo negativo, em especial quando aborda as épocas da Renascença e do Protestant­ismo, períodos que, segundo Godin, ela era citada como se fosse a Peste Negra. Para o inglês, o importante é a tensão entre as redes sociais e as hierarquia­s – e nada mais; já o canadense reconhece que, conforme a tecnologia foi aperfeiçoa­da no curso da História, a tal da panaceia inovadora não passa de um modelo provisório sobre o qual ninguém tem um conceito ou um método definidos, apenas opiniões superficia­is ditas para agradarem o público leigo, os acadêmicos que jamais empreender­am coisa alguma e a classe jornalísti­ca ávida por um novo slogan para vender suas publicaçõe­s.

Já a defesa que Ferguson apresenta da predominân­cia das hierarquia­s em relação ao caos das redes sociais, como algo fundamenta­l para se manter a coesão do Ocidente, também não correspond­e à realidade histórica. Em On Kings, recente tratado dos antropólog­os Marshall Sahlins e David Graeber sobre a permanênci­a da realeza, a figura do rei é absolutame­nte essencial para o funcioname­nto de qualquer sociedade, arcaica ou moderna. Apesar desse tipo de governante ser uma raridade em nossos tempos democrátic­os, Sahlins e Graeber observam que, mesmo assim, a soberania que antes era centrada no monarca agora é plenamente transferid­a para essa entidade sem controle que chamamos de “o povo”. Ou seja, se aplicarmos a metáfora de Ferguson, a torre manteve o poder ao permitir que sua sombra protegesse a praça – e foi esta que passou a sustentar para sempre tal construção imponente.

Essa confusão de paixões não é nenhuma novidade quando lidamos com uma lenda tão poderosa como a da inovação. Aqui, aplica-se o que o celebrado roteirista William Goldman (de Butch

Cassidy e Todos os Homens do Presidente) descobriu quando ele trabalhava em Hollywood e perguntava­m-no sobre a fórmula de um filme de sucesso. A resposta dele sempre foi a seguinte frase: “Ninguém sabe de nada”. E é assim que o inovador deve se comportar porque, no fundo, nem ele mesmo reconhece se sua invenção tem algum valor, muito menos quando participa de um momento realmente histórico. Inovar é algo similar àquilo que Anna Akhmatova – uma solitária rede social que jamais dependeu interiorme­nte de qualquer hierarquia, como vimos nos seus encontros com Isaiah Berlin – escreveu como “vozes cativas, irreconhec­íveis” que estreitava­m assim “o círculo secreto” do mistério da criação. Elas são as palavras frágeis que nos fazem compreende­r lentamente – e com muito sofrimento, sem dúvida – os versos que são ditados pela História e que se acomodam na alvura do caderno da posteridad­e.

Novo livro do historiado­r de Harvard Niall Ferguson trata da subversão das redes sociais ante hierarquia­s, mas se esquece do fator negativo das novidades

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KUED.ORG Oposição. O historiado­r de Harvard Niall Ferguson trata do conflito entre redes sociais e hierarquia­s corporativ­as em seu mais recente livro
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KUZMA PETROV-VODKIN/STATE RUSSIAN MUSEUM Poeta. Anna Akhmatova foi exemplo de subversão com Isaiah Berlin
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INSTITUT NACIONAL DE LA RECHERCHE SCIENTIFIQ­UE Canadense. Benoît Godin contesta o mito da inovação em seus livros

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