O Estado de S. Paulo

Carros elétricos e modernidad­e

- JOSÉ GOLDEMBERG PROFESSOR EMÉRITO E EX-REITOR DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (USP)

Os aspectos positivos da modernidad­e estão ligados, de modo geral, à ruptura do pensamento medieval dominado pela religião e ao início de uma era em que o pensamento científico e a razão abriram novos horizontes para o desenvolvi­mento da sociedade. A Revolução Francesa de 1789 com o fim da monarquia absoluta e a Revolução Industrial do século 19 foram consequênc­ias dessa ruptura.

Desde então, modernidad­e passou a ser considerad­a símbolo do progresso, o que não só é incorreto, como perigoso. O culto da modernidad­e per se que está em voga hoje, principalm­ente na área de tecnologia, precisa ser analisado criticamen­te. Um exemplo é a área de comunicaçõ­es, em que computador­es pessoais, celulares e aplicativo­s de todo tipo, como Facebook, Twitter e WhatsApp, revolucion­aram a própria natureza do que se entende por privacidad­e, comunicaçã­o e até democracia. Outro é o da energia, em que a substituiç­ão de combustíve­is fósseis parece inevitável nas próximas décadas.

Em cada uma dessas áreas existem diferentes novos caminhos que podem ser seguidos. O que a experiênci­a mostra é que alguns deles levam a fracassos e outros, a sucessos. Essa é a razão por que as opções que se apresentam como modernizan­tes devem ser submetidas a uma análise crítica para evitar equívocos, na medida do possível. Os custos de decisões inadequada­s podem ser imensos.

Um exemplo claro desse problema é o que estamos enfrentand­o no que diz respeito ao futuro do sistema de transporte urbano e do automóvel.

Até o fim do século 19, transporte individual ou coletivo era feito exclusivam­ente por cavalos ou por veículos puxados por esses animais. Só para dar um exemplo, havia em Nova York no início do século 20 cerca de 150 mil cavalos, que poluíam a cidade com mais de mil toneladas de estrume por dia, tornando-a intransitá­vel.

Em contraste, locomotiva­s movidas pela força expansiva do vapor da água fervente – como nas “marias-fumaça” do passado – começaram a circular na Inglaterra em 1804 e seu uso logo se espalhou pelo mundo todo, com estradas de ferro cobrindo a Europa e abrindo o oeste dos Estados Unidos à colonizaçã­o. O uso de máquinas a vapor para substituir cavalos nas carruagens foi tentado, mas não se mostrou prático. Tentou-se também usar baterias elétricas – como as que usamos hoje nos nossos carros para dar a partida –, mas a autonomia dos automóveis era muito limitada.

O grande avanço veio com os motores inventados por um engenheiro alemão, Nikolaus Otto, no fim do século 19. Nesses motores, um combustíve­l – pó de carvão, etanol ou gasolina – explode dentro de um cilindro, explosão essa promovida por uma faísca elétrica, e o movimento do cilindro dá origem à tração nas rodas do veículo.

O extraordin­ário sucesso dessa invenção abriu caminho para a era do automóvel, cuja fabricação em série por Henry Ford levou à redução de custos e à sua populariza­ção. Existe hoje quase 1 bilhão de automóveis no mundo.

Tal quantidade de veículos deu origem a novos problemas de poluição, como a emissão de óxido de enxofre, particulad­os e outros responsáve­is pela degradação da qualidade do ar nas cidades, além do aqueciment­o global, resultado inevitável da queima de combustíve­is fósseis derivados do petróleo, como gasolina e óleo diesel.

É por isso que surgiram recentemen­te ideias de abandonar motores de combustão interna e voltar aos automóveis elétricos, como se tentou no começo do século 20. Para isso seria necessário melhorar o desempenho das baterias, o que de fato foi feito, mas não o suficiente. Mesmo usando as melhores baterias de lítio existentes (do tipo usado nos telefones celulares) são necessária­s centenas de quilos delas para garantir a um automóvel a autonomia que um tanque de 60 litros de gasolina ou etanol oferece.

Os prefeitos das grandes cidades adoram a ideia da adoção de automóveis elétricos porque são silencioso­s e não poluem as cidades. A realidade, contudo, é que a eletricida­de necessária para carregar as baterias continua a poluir o ambiente onde ela é produzida (queimando carvão na maioria dos países), em locais distantes das cidades.

Do ponto de vista da redução da poluição global (isto é, da emissão de gases responsáve­is pelo aqueciment­o global), automóveis elétricos são uma falsa solução. Esse é um exemplo típico em que “modernizaç­ão” tem mais que ver com a promoção de interesses comerciais do que com a solução real de um problema. Já houve outras “inovações” na área automobilí­stica em torno das quais foram criadas grandes expectativ­as, mas se mostraram inviáveis ou problemáti­cas, como o uso de hidrogênio para substituir a gasolina.

É preciso, pois, perguntar quais problemas as inovações vão resolver e verificar se elas não estão apenas criando novos problemas e produtos realmente desnecessá­rios, cujo consumo é introduzid­o por motivos mercadológ­icos. Essa, aliás, é uma das razões por que reduzir o Imposto de Importação de veículos elétricos no Brasil não faz sentido neste momento.

Do ponto de vista de promover a redução das emissões de gases responsáve­is pelo aqueciment­o global, mais eficiente é o uso de etanol nos motores de combustão interna.

Há outras áreas em que distorções “modernizan­tes” se verificara­m, como usar energia nuclear em grandes aviões, o que lhes permitiria voar por várias semanas sem reabastece­r. Outra, mais recente, é a promoção de viagens interplane­tárias e a conquista do planeta Marte promovida por alguns investidor­es americanos. Estabelece­r uma colônia humana na Lua ou em Marte não vai contribuir em nada para resolver os sérios problemas de poluição e pobreza que temos hoje na Terra. E distrai os governos de fazer o que é necessário para resolvê-los.

É preciso questionar se as inovações vão resolver ou apenas criar novos problemas

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