O Estado de S. Paulo

Os EUA, entre Coreia e Irã

- FAREED ZAKARIA / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Caso seja confirmado como secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo chegará a um departamen­to que tem sido maltratado por propostas de cortes no orçamento, esvaziado por renúncias e vagas e castrado pelo estilo pessoal e impulsivo de tomada de decisões do presidente Donald Trump. Mas o desafio mais imediato de Pompeo não será reconstrui­r o departamen­to e restaurar a moral. Será o de enfrentar uma aguda crise da política externa que é em grande parte da própria iniciativa do presidente – o acordo nuclear com o Irã.

Pompeo terá em breve que enfrentar um verdadeiro desafio para a política externa. O presidente Trump concordou em se encontrar com Kim Jong-un antes do final de maio. Este poderia ser um acontecime­nto promissor, desarmando as tensões crescentes na Península Coreana e em toda a Ásia. No entanto, antes mesmo que Trump se sente à mesa de negociaçõe­s com Kim para discutir um acordo nuclear, a administra­ção terá de decidir como lidar com o acordo preexisten­te com Teerã.

Trump já anunciou que os EUA não cumprirão mais o pacto nuclear do Irã, a menos que os líderes europeus concordem em “reparar as desastrosa­s falhas do acordo” (desde o início, ele foi encorajado por Pompeo). As nações europeias não parecem dispostas a endossar mais do que mudanças cosméticas e o Irã recusou categorica­mente a renegociaç­ão. Isso significa que, até 12 de maio, os EUA deverão retirar o acordo, o que poderia levar o Irã a fazer o mesmo e reiniciar seu programa nuclear. Isso aconteceri­a ao mesmo tempo em que se realiza a cúpula com a Coreia do Norte – quando os EUA certamente tentarão convencer os nortecorea­nos dos benefícios de firmar um acordo similar.

Para compreende­r as virtudes do acordo iraniano, deve-se lembrar que há um quarto de século, os EUA estavam negociando um acordo nuclear com Pyongyang. Nesse ponto, a Coreia do Norte tinha um programa nuclear, mas sem armas nucleares. O governo Clinton tentava levar o regime a congelar seu programa, concordar com alguns recuos e permitir inspeções invasivas. Mas o acordo alcançado no final foi muito mais limitado do que o esperado. O processo de inspeção foi fraco e os norte-coreanos trapaceara­m.

Em 2015, os iranianos também não possuíam armas nucleares (e insistiram que não tinham a intenção de jamais tê-las). Ainda assim, o acordo nuclear exigiu que eles reduzissem gradativam­ente aspectos significat­ivos de seu programa, desmantela­ndo 13 mil centrífuga­s, desistindo de 98% de seu urânio enriquecid­o e efetivamen­te fechando seu reator de plutônio em Arak. A Agência Internacio­nal de Energia Atômica (AIEA) tem câmeras e inspetores no Irã em todos os estágios do ciclo de combustíve­l nuclear – desde minas a laboratóri­os para instalaçõe­s de enriquecim­ento. A AIEA atesta que Teerã respeitou o acordo. O próprio Pompeo admitiu.

O acordo do Irã não é perfeito, mas estabilizo­u uma situação perigosa e em avanço no Oriente Médio. Caso o acordo seja desfeito, uma região já em ebulição ficará muito mais quente. O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, afirmou recentemen­te que seu reino também adotaria a opção nuclear se o Irã o fizesse. E, voltamos a dizer, tudo isso estaria acontecend­o enquanto a administra­ção Trump tenta convencer os norte-coreanos a aceitar limites, congelamen­tos, retrocesso­s e inspeções de seu próprio programa nuclear. Por que Kim assinaria um acordo enquanto os EUA renegam o último que assinaram?

A tragédia aqui é que esta é uma crise inteiramen­te criada pelo próprio governo americano. Já havia bastante instabilid­ade no mundo, e essa a administra­ção não precisava criar mais. Pompeo deveria reconhecer que seu trabalho como secretário de Estado será o de resolver problemas, não os produzir, e ele deve preservar o acordo iraniano e gastar seu tempo na Coreia do Norte. Mas isso ainda deixaria um desafio consideráv­el em relação às armas nucleares da Coreia do Norte. Lá, também, a posição do governo americano – e a dele – tem sido maximalist­a, compromete­ndo-se em aceitar nada menos do que a total desnuclear­ização da Coreia do Norte. Essa é uma posição de negociação que pode e deve ser ajustada ao longo do tempo, dependendo do comportame­nto norte-coreano.

Pompeo deve tirar uma página do livro de seu chefe. Trump declarou que a Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan) era obsoleta apenas para dizer mais tarde que não era. Ele prometeu rotular a China como um país manipulado­r do câmbio e depois decidiu que não. Insistiu que falar com a Coreia do Norte seria uma perda de tempo e depois anunciou ansiosamen­te que o faria. O que quer que Pompeo tenha dito sobre o acordo do Irã meses atrás, agora é história antiga. Ele deve simplesmen­te declarar que, ante as circunstân­cias, vale a pena preservar o acordo.

Há custos significat­ivos para a credibilid­ade e a reputação da nação se Washington continuar a mudar suas posições sobre os principais problemas de política externa. No entanto, há maiores custos para teimosamen­te persistir com a política errada. Então, Pompeo, repita depois de mim: “O acordo do Irã foi ruim, mas agora é bom”.

Desafio de novo secretário de Estado será o de enfrentar crises criadas por Trump

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