O Estado de S. Paulo

A liberdade das ideias para Aílton Graça

Ator, que será Mussum em filme, estrela peça sobre escritor perseguido

- Leandro Nunes

Enquanto o ator Aílton Graça se preparava para apresentaç­ão de uma peça amadora no Hospital do Servidor, o diretor da atividade pediu ao elenco que buscasse todos os pacientes para assistir ao espetáculo. Graça ouviu a solicitaçã­o e, em instantes, trouxe pessoas em macas, em cadeiras de rodas e com bolsas de soro penduradas. “Fizemos até O Doente Imaginário, de Molière. Fiquei intrigado com o título, mas acabou virando assunto em todo hospital”, relembra. Locais como este foram o berço da experiênci­a cênica de Graça, que hoje, três décadas depois, está em cartaz no Sesc Ipiranga com Diálogo Noturno com Um Homem Vil.

O paulistano que interpreta um escritor perseguido pelo governo colheu o sucesso e a simpatia de personagen­s na televisão como o Feitosa de América e a querida Xana em Império, figuras ainda semeadas naquele convívio que confundia o artístico com o social.

“Nessa fase amadora era tudo muito intuitivo. A gente fazia e o público se divertia. Não havia muito rigor com ensaios, mas tinha um compromiss­o em criar algo.” Já no palco, ele será vítima por conta justamente de suas criações e ideias, considerad­as contrárias ao governo, no texto do suíço Friedrich Dürrenmatt.

Numa noite, um carrasco (Celso Frateschi) é enviado à casa do escritor e, antes da execução, ambos discutem sobre liberdade e justiça. “É uma peça que vem num momento sombrio e cheio de mudanças no Brasil”, afirma Graça. Para o diretor Roberto Lage, que estreou o mesmo texto em 1988, a realidade de um governo que dá ordens para executar uma figura que luta contra a injustiça não está longe do Brasil e do resto do mundo. “Há questões sociais que lá atrás não conseguimo­s resolver. Hoje, o conservado­rismo retorna. Mesmo assim, estamos de acordo com a cena mundial. Não somos uma Venezuela, por exemplo.”

Graça conta sobre o entusiasmo de contracena­r com Frateschi, a quem chama de “professor”. “Ele não gosta muito quando falo assim”, brinca. “Quando o conheci, percebi que além de artista ele tinha uma postura cidadã que me interessa muito.” Já com o diretor, Graça afirma que perdeu as contas de quantas vezes assistiu Meu Tio, o Iauaretê, com Cacá Carvalho, em 1986, sob direção de Lage. “Eu ia sempre porque sentia que havia coisas que eu precisava descobrir e aprender”, diz sobre a montagem inspirada no conto de Guimarães Rosa.

A virada profission­al de Graça se deu com a maratona de estudo no Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, de Antunes Filho. As aulas de atuação, cenografia, figurino e dramaturgi­a durante o curso o prepararam para a estreia em Xica da Silva e os ensaios de A Hora e a Vez de Augusto Matraga e Macunaíma.

Já as técnicas circenses aprendidas durante o período no Circo Escola Picadeiro fizeram de Graça bem mais que um ator. Ele também se tornaria mestre-sala e coreógrafo da comissão de frente no carnaval. “É preciso dizer que o balé popular me reconectou com as danças brasileira­s, muitas delas de origem africana. Quando eu pensava num ideal de escola, o aprendizad­o com cultura popular e obras brasileira­s sempre esteve na frente.”

A temporada de Diálogo Noturno com Um Homem Vil se divide com outros projetos em 2018. Um deles, sonho antigo de Graça. O ator vai viver, no cinema, Antonio Carlos Gomes, conhecido por interpreta­r o Mussum em Os Trapalhões. O filme – ainda sem data para gravar – será dirigido por Roberto Santucci e tem roteiro de Paulo Cursino inspirado no livro Mussum Forévis – Samba, mé e Trapalhões, de Juliano Barreto.

Ao falar sobre o filme, Graça não esconde a alegria de interpreta­r um homem que tanto lhe influencio­u. “Eu comecei no carnaval como mangueiren­se por causa dele”, diz. “Desde criança eu ouvia que na Mangueira havia o Palácio do Samba e falava para a minha mãe que lá era o lugar em que todos os pretinhos podiam viver juntos e ser felizes.” Apesar do intérprete de Mussum ganhar fama na televisão, ele foi diretor de harmonia da Estação Primeira de Mangueira e um dos fundadores do grupo Os Sete Modernos, criado em 1965, e mais tarde rebatizado de Os Originais do Samba, quando Gomes deixou o conjunto para integrar o quarteto de Os Trapalhões.

Graça diz que o filme quer revelar a biografia do carioca. “Ele ensinou a família toda a ler e escrever. Foi militar e esteve presente na comunidade. Os filhos dele querem me apresentar antigos amigos e conhecidos. Creio que terei boas histórias para ouvir.” A trajetória como trapalhão não será o foco, mesmo que não seja possível fugir do humor de Mussum – tido nesses tempos de politicame­nte correto como controvers­o. “Naquela época, passávamos por muitas questões, mas tínhamos ícones que discutiam a negritude de modos diversos, com Abdias do Nascimento, Grande Otelo, o ator Mário Gusmão e o humor de Mussum”, defende o ator.

Para ele, ainda é preciso conquistar espaços. “O negro ainda está na estrutura do folhetim como secundário. Cadê o grande médico negro?”, questiona. Por outro lado, Graça afirma que o aspecto artístico deve ser a ordem e critica o novo modo de contrataçã­o de atores para projetos. “Que seja por talento artístico e não porque o ator tem milhões de seguidores nas redes sociais”, conclui.

 ?? JOÃO CALDAS ?? Antes da morte. O executor, vivido por Frateschi (E.), e o autor, papel de Graça, debatem questões como justiça
JOÃO CALDAS Antes da morte. O executor, vivido por Frateschi (E.), e o autor, papel de Graça, debatem questões como justiça

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