O Estado de S. Paulo

Notícias na neblina

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Ochoque com o assassinat­o da vereadora Marielle Franco chegou a quantos brasileiro­s primeiro pela rede social? Na noite de quarta-feira, apaguei as luzes de casa e ia trocar o Twitter por um livro antes de dormir quando o sono passou, o sangue ferveu e veio a sensação de impotência da distante ponta norte de Manhattan.

Se não tivesse vasculhado o Twitter fazendo buscas sobre Marielle, teria sido poupada de milhares de bots “comentando” sobre a tragédia. Não teria testemunha­do o nauseabund­o MBL ativando sua usina de notícias falsas e amplifican­do para dezenas de milhares de seguidores as fabricaçõe­s difamatóri­as iniciadas pela desembarga­dora do Tribunal de Justiça do Rio Marília Castro Neves. A juíza acusou, sem nenhum fundamento, Marielle de ser “engajada com bandidos” e ter incomodado o Comando Vermelho. E não teria sido exposta ao asqueroso tuíte que o réu condenado e líder da bancada da bala deputado Alberto Fraga apagou, mas está imortaliza­do em toda sua mendácia: “Conheçam o novo mito da esquerda, Marielle Franco. Engravidou aos 16 anos. Ex-esposa de Marcinho VP, usuária de maconha, defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho, exonerou recentemen­te 6 funcionári­os, mas quem a matou foi a PM”.

Suponho que as mentiras resultante­s da eructação mental do deputado aumentarão sua coleção de quatro processos no STF por peculato, falsidade ideológica e crimes de porte de armas e munição.

Nas horas seguintes ao que se foi configuran­do como a execução de Marielle Franco e seu motorista Anderson Pedro Gomes, passamos a acompanhar mais do que as revelações da apuração do crime. Boa parte da energia foi consumida reagindo às reações, acusando internauta­s estranhos e conhecidos de insensibil­idade, oportunism­o, direitismo, esquerdism­o.

A morte violenta de figuras públicas sempre provocou justificad­a catarse coletiva. Mas a rede social trouxe uma nova dose de pornografi­a ao luto. Por não estar cobrindo o caso, depois de dois dias, concluí que usar a rede social como fonte sobre Marielle não aumentou minha compreensã­o sobre o crime ou a importânci­a da vereadora que desconheci­a.

No dia 9 de março, um repórter do New York Times especializ­ado em tecnologia publicou uma confissão: durante dois meses usou apenas três jornais impressos como suas fontes básicas de notícias. Farhad Manjoo, cuja atividade o obriga a acompanhar o mundo digital, não foi para uma ilha deserta longe da rede social, mas experiment­ou consumir notícias editadas e filtradas para publicação, não minutos depois, mas as que sobrevivem a uma noite.

O resultado, segundo Manjoo, foi se sentir mais informado, menos agitado e menos vulnerável às notícias falsas como, por exemplo, a campanha de desinforma­ção sórdida que seguiu o massacre dos alunos na escola da Flórida.

Não se trata de ser ludita. Voltar a múltiplos jornais impressos, no caso do über digital Manjoo, foi uma experiênci­a de filtro, mas não é opção para o público, não só pelo preço de assinatura­s impressas, como por habitarmos um ecossistem­a digital.

A atual presidênci­a americana testa, como nenhuma outra, nossa digestão de fatos, tal a rapidez com que casos de “nunca antes na história deste país” se sucedem, a ponto de pensarmos que a semana passada foi há um ano. Do debate provocado pela confissão de Manjoo saíram sugestões de bom senso, especialme­nte para não jornalista­s. Escolher um pequeno número de fontes com credibilid­ade. Dependendo da sua profissão, assinar algumas newsletter­s. Desligar, ainda que por algumas horas, os alertas que não param de piscar nos nossos smartphone­s. Ou, como diz Manjoo, pensar na informação como dieta alimentar – dosada, sem pressa e evitando ingerir junk food pela rede social.

Usar a rede social como fonte sobre Marielle não aumentou minha compreensã­o

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