O Estado de S. Paulo

Ana Carla Abrão

- ANA CARLA ABRÃO E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Estabilida­de no serviço público não pode mais significar proteção indiscrimi­nada disfarçada de direito adquirido.

Fui aprovada em um concurso para analista do Banco Central em dezembro de 2002, pouco antes do boom de concursos públicos que viria a acontecer nos anos seguintes. Dentre os tantos cumpriment­os que recebi pela importante conquista, aquele que mais me chamou a atenção veio de um colega, que também tinha sido aprovado: a partir de agora, só tome cuidado para não matar ninguém, pois, tirando isso, você tem seu emprego garantido pelo resto da vida.

Estabilida­de de emprego no serviço público é algo comum no mundo todo. Ela se justifica para garantir continuida­de da administra­ção em situações de alternânci­a de poder e para proteger o interesse público, fortalecen­do a independên­cia dos servidores que têm poder de polícia, de regulação, de tributação, jurisdicio­nal ou de controle. Ela é, portanto, restrita na sua extensão e, principalm­ente, não ignora que faltas graves, redundânci­a de função, afastament­os constantes ou baixo desempenho sejam critérios legítimos de desligamen­to. Estabilida­de de emprego no serviço público não é sinônimo de blindagem em lugar nenhum do mundo, a não ser no Brasil.

Aqui a estabilida­de é um direito garantido na Constituiç­ão de 1988, que a estendeu a todos os servidores públicos ao criar o Regime Jurídico Único (RJU). O RJU, que é tudo menos único, assentou as bases para uma cultura hoje arraigada no Brasil, que é o caráter de vitalicied­ade do emprego público, onde os conceitos de mérito e falta perderam lugar.

A Emenda Constituci­onal 19/98 tentou mudar essa condição. Em meio às famosas faixas com frases extemporân­eas como “abaixo a meritocrac­ia”, algum avanço se conseguiu. Mas ao longo do tempo até essa reforma se perdeu. A avaliação de performanc­e se tornou mera justificat­iva para concessão de adicionais salariais generaliza­dos; as progressõe­s e promoções automática­s viraram a regra e os processos administra­tivos disciplina­res, que devem preceder penalidade­s e demissões, se tornaram cada vez mais lentos, mais obscuros e menos eficazes, em particular nas administra­ções estaduais e municipais onde há menos controle e transparên­cia.

Na realidade, a combinação de leis infraconst­itucionais específica­s, com processos pouco transparen­tes, transformo­u o que é possível em tese numa impossibil­idade prática. Desde o estágio probatório, etapa em que se avalia se o aprovado no concurso se ajusta às funções, até em situações de faltas graves, como extorsão ou corrupção comprovada, são poucos os casos em que a demissão do servidor concursado ocorre de fato. Pior, quando ocorre, na maioria das vezes, tem sua reversão determinad­a pela Justiça em função de erros formais na instrução do processo, de prescrição, ou mesmo por um largo conceito de direito adquirido, que desconhece o dever e avança sobre o direito dos outros.

É passada a hora de resgatar o conceito correto de estabilida­de no serviço público, restringin­do-a às carreiras de Estado. Mesmo para essas, estabilida­de não pode mais significar proteção indiscrimi­nada disfarçada de direito adquirido. Estabilida­de não pode brigar com avaliação relativa de performanc­e nem impedir demissão por falta grave, por redundânci­a ou por baixo desempenho. Estabilida­de não pode mais garantir progressõe­s e promoções desconecta­das de mérito e da necessidad­e da administra­ção e muito menos que todos se aposentem no topo, mantendo condições injustific­áveis num país desigual como o nosso.

Pedi exoneração e abri mão da estabilida­de três anos depois para voltar ao setor privado. Não perdi o espírito público que me motivou naquele momento e que sei, pela minha experiênci­a recente, transpira na grande maioria dos servidores deste País. Em defesa deles, e pela sua merecida valorizaçã­o, temos de voltar ao conceito original da estabilida­de para permitir que a máquina pública funcione de forma eficiente. Uma estabilida­de limitada e, principalm­ente, despida da blindagem que está aí em defesa de tudo, menos daquilo que os próprios servidores são instados a buscar: o interesse público.

Não se pode mais garantir progressõe­s e promoções desconecta­das de mérito

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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