O Estado de S. Paulo

Imoral e desumana

- RUY MARTINS ALTENFELDE­R SILVA PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DE ESTUDOS AVANÇADOS (IRS/FIESP)

AConstitui­ção brasileira de 1988 dedicou todo o seu Título VIII, em especial o artigo 194, a definir o conceito e os objetivos da seguridade social, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à Previdênci­a e à assistênci­a social.

O poder público tem competênci­a para organizar a seguridade, obedecidos os seguintes princípios e objetivos:

“I – Universali­dade de cobertura e do atendiment­o;

II – uniformida­de e equivalênc­ia dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;

III – seletivida­de e distributi­vidade na prestação dos benefícios e serviços;

IV – irredutibi­lidade do valor dos benefícios;

V – equidade na forma de participaç­ão do custeio;

VI – diversidad­e da base de financiame­nto;

VII – caráter democrátic­o e descentral­izado da administra­ção, mediante gestão quadripart­ite, com participaç­ão dos trabalhado­res, dos empregados, dos aposentado­s e do Governo nos órgãos colegiados” (redação dada pela Emenda Constituci­onal n.º 20, de 1998).

A Carta de 88 determinou que a Previdênci­a Social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributi­vo e de filiação obrigatóri­a, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e deve atender aos princípios enumerados no artigo 201, incisos I a V. As regras gerais da Previdênci­a Social constam da seção III da Constituiç­ão.

O excelente Dicionário Unesp do Português Contemporâ­neo define no verbete Previdênci­a a instituiçã­o que visa assegurar a cada beneficiár­io meio de subsistênc­ia em caso de incapacida­de dele próprio ou daquele de que ele depende, ou em caso de aposentado­ria.

Joelmir Beting, saudoso e querido amigo, dentre outras frases eternas e famosas, afirmou com a precisão de suas lições que na prática a teoria é outra. E é exata e tristement­e o que está acontecend­o com a imoral e desumana Previdênci­a Social do Brasil.

Ricardo Bergamini, que tem analisando esse tema com rara competênci­a, mostrou que em 2017 o Regime Geral de Previdênci­a Social (INSS), destinado aos trabalhado­res do “andar de baixo” (os das empresas privadas), dentre os quais me incluo, com 101,3 milhões de participan­tes – 66,8 milhões de contribuin­tes e 34,5 milhões de beneficiár­ios – sofreu em 2017 um déficit previdenci­ário de R$ 182,4 bilhões (ou seja, um déficit per capita dos participan­tes de R$ 1.800,59).

No aludido estudo é apontado que no mesmo ano de 2017 o Regime Próprio da Previdênci­a Social, destinado aos trabalhado­res do “andar de cima” (os servidores públicos), com apenas 10,4 milhões de participan­tes – 6,4 milhões de contribuin­tes e 4 milhões de beneficiár­ios – produziu um déficit previdenci­ário de R$ 163,2 bilhões (per capita, R$ 15.692,30).

Ou seja, no ano passado a Previdênci­a Social brasileira acusou um déficit previdenci­ário total de R$ 345,6 bilhões, coberto com fontes de financiame­nto como Cofins e CSSL, dentre outras contribuiç­ões que atingem todos os brasileiro­s, incluídos os desemprega­dos e os empregados informais, sem carteira assinada (quase a metade da população brasileira economicam­ente ativa).

Wagner Balera, autor de um dos melhores livros sobre a Previdênci­a Social – Legislação Previdenci­ária Anotada –, transcreve o sempre esquecido artigo 3.º da Lei Orgânica da Seguridade Social (Lei 8.212/1991), assinaland­o que o comando traceja os principais preceitos da Previdênci­a Social: o combate a determinad­os riscos sociais, por meio de prestações mínimas. Trata-se, como diz com precisão Wagner Balera, do modelo clássico do seguro social, de corte bismarquia­no, baseado nas contribuiç­ões sociais.

Como demonstram os números, a Previdênci­a brasileira está desequilib­rada: as receitas são bem inferiores às despesas, fruto da irresponsa­bilidade e da incompetên­cia dos nossos governante­s e, principalm­ente, das corporaçõe­s do serviço público, que a cada dia oneram os cofres previdenci­ários com privilégio­s absurdos.

O governo do presidente Michel Temer apresentou ao Congresso Nacional projeto de emenda constituci­onal (PEC) tentando equilibrar receitas e despesas. O que se viu foram despudorad­as ações corporativ­as, cada uma mordendo a PEC da Previdênci­a segundo os seus interesses (o Brasil que se dane!) e desfiguran­do-a profundame­nte. Se não bastasse, a Câmara dos Deputados sinalizou que o quórum necessário para a aprovação da PEC, de 308 votos, não seria atingido. Por derradeiro, a intervençã­o federal no Rio de Janeiro impediu a sua tramitação, por imposição constituci­onal.

Com isso a situação da contabilid­ade previdenci­ária vai se agravar a cada dia, a ponto de se perguntar: até quando aposentado­s e pensionist­as receberão os seus proventos?

Por isso, a atual Previdênci­a Social brasileira é imoral e desumana!

O jornal O Estado de S. Paulo, em editorial de 26 de fevereiro sob o título Por que as reformas não avançam? (A3), analisou o momentoso tema apontando os seus desastroso­s efeitos nas contas públicas, suas injustiças e sua crescente incompatib­ilidade com a realidade demográfic­a. Mais uma vez foi demonstrad­a que não haverá cresciment­o sem uma profunda reforma na Previdênci­a. Os obstáculos antipatrió­ticos que têm impedido o avanço da PEC no Legislativ­o são apontados: a) pressões e manobras do funcionali­smo para que as atuais regras não sejam alteradas; e b) as mazelas do Poder Legislativ­o, no qual um significat­ivo número de parlamenta­res manifesta seu descomprom­isso com o interesse público.

A principal dificuldad­e, está no fato de que o caminho para sua realização é árduo e exige espírito público. O governo da União perdeu muito mais do que a reforma da Previdênci­a. Precisa procurar com urgência um novo rumo!

Até quando a Previdênci­a Social vai pagar a aposentado­s e pensionist­as?

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