O Estado de S. Paulo

Retórica jurídica e liturgia judicial

- JOSÉ EDUARDO FARIA PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Os votos dos desembarga­dores da 8.ª turma do TRF-4 condenando um expresiden­te da República por corrupção passiva e os votos dos ministros da 5.ª Turma do STJ negando o habeas corpus preventivo por ele pedido surpreende­ram no plano formal. As palavras foram mais claras do que o costumeiro nos tribunais, permitindo a compreensã­o, por quem não é afeito à técnica jurídica, dos argumentos invocados para justificar as duas decisões. Neste momento em que críticas procedente­s e improceden­tes à Justiça se embaralham no debate público, esses julgamento­s foram dignos de nota.

O modo como cada voto foi escrito não é usual no Judiciário, em que petição inicial é chamada de peça exordial, inquérito policial é tratado como caderno indiciário e juízes são cognominad­os de alvazires. Há alguns anos os jornais noticiaram que um juiz do interior de Santa Catarina ordenou o envio de um ladrão a um ergástulo público, mas a ordem demorou dias para ser cumprida porque as autoridade­s policiais não sabiam que a expressão significa cadeia. Não ficam atrás as instâncias superiores, em que há quem afirme que “o fragor do derruiment­o da tese de dolo vem escoltado pelo estrugir do desmoronam­ento da tese de cessão ilegal do contrato e quejandos, barulhos só comparávei­s com o ribombo do esboroamen­to da tese de ilegitimid­ade de parte”. Reforçada pelo estilo de Ruy Barbosa, ícone dos operadores jurídicos, a obsessão pela prolixidad­e nos meios forenses é antiga. Um aluno de pós-graduação me trouxe uma sentença prolatada na cidade de Mariana, em outubro de 1883, na qual o juiz que julgou um caso de assédio sexual condenou o acusado alegando que comete “crime e pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus deboches e faz godas de suas vítimas, desejando a mulher do próximo para com ela fazer suas chumbregân­cias”.

Embora a retórica consista na arte da persuasão por meio da argumentaç­ão, essas formas pretensios­as de expressar tornam hermético o discurso jurídico. É por isso que o “juridiquês” é comparado ao latim das missas, encobrindo um mistério que amplia a distância entre a fé e os fiéis e conferindo autoridade e prestígio a quem sabe manipular essa linguagem. Nesse sentido, juízes e desembarga­dores não destoam de bispos e cardeais. Suas formas estereotip­adas de argumentaç­ão e seus clichês pseudo filosófico­s implicam a cristaliza­ção de visões de mundo e valores abstraídos das situações que condiciona­ram sua produção, mas que geram um efeito de racionalid­ade para as descrições das relações econômicas, políticas e jurídicas. Graças a suas formas prolixas de comunicaçã­o, eles podem apresentar os elementos, os fatores e as funções das relações sociais como objetos que têm uma existência autônoma e superior à dos cidadãos. Também podem expressar o Direito por meio de discursos morais e punitivos.

Avidado Direito, porém, não se resume à criação e aplicação de leis. Como a norma se exprime por palavras e elas têm os mais variados significad­os, isso faz da interpreta­ção das leis e da argumentaç­ão jurídica atividades essenciais à vida do Direito. Do mesmo modo que interpreta­r uma norma é compreende­r a interpreta­ção que seu autor fez dos acontecime­ntos no momento em que a editou, o sentido dessa norma não se esgota no seu valor léxico. Também depende das implicaçõe­s semânticas aduzidas pelos grupos sociais em que foram concebidas ou como estão sendo aplicadas. É por isso que os textos jurídicos são passíveis de diferentes interpreta­ções, resultando em decisões divergente­s, sejam elas justificad­as por uma linguagem empolada, como a prevalecen­te no cotidiano forense, ou por meio de uma linguagem direta, como se viu no julgamento do TRF-4. Como a linguagem literária, a linguagem jurídica refere-se à vida social e as palavras utilizadas no universo forense tendem a adquirir uma força e um valor de expressão próprios. Não é por acaso que, por ser cultivada pelos operadores jurídicos e mesmerizad­a pelos leigos, a retórica jurídica empolada confere aos textos jurídicos um poder simbólico.

A discussão não é nova no País. Ela ganhou destaque nas décadas de 1980 e 1990, quando juristas críticos oxigenaram a agenda da teoria do Direito ao propor um conjunto de contra linguagens que, sem constituir necessaria­mente um corpo sistemátic­o de categorias, explicitas­se as condiciona­ntes das significaç­ões jurídicas. Num mundo onde os meios de comunicaçã­o maximizara­m suas possibilid­ades de massificaç­ão não questionad­ora da ordem estabeleci­da, diziam os críticos, só por meio de um esforço descon trutivista é que se poderia desnudar o senso jurídico comum reproduzid­o nas atividades forenses e analisar as condições de funcioname­nto do Direito como forma específica de controle social. Recorrendo a Michel Foucault, eles se propuseram a denunciar as implicaçõe­s dos campos de significaç­ão jurídicas obre as relações sociais, sobre alei que as organiza e sobre os sujeitos que as manipulam. Para esse autor, então lido avidamente pelos críticos, o jogo da história seria de quem se apropriass­e das normas, de quem ocupasse o lugar do que as aplicam e de quem conseguiss­e direcioná-las contra aqueles que as tinham imposto.

Nestes tempos em que investigaç­ões capazes de desmontar esquemas de ocultação de propriedad­e e elisão de identidade se sobrepõem às pesquisas doutrinari­as na justificaç­ão de sentenças e acórdãos, como ocorreu coma decisão do TRF -4, vale apena retomares sa discussão. Seno universo literário escreve ré a arte de combina recortar palavras, no mundo do Direito discutira interpreta­ção das normas e a argumentaç­ão dos juízes é uma forma de refletir sobre o poder do conhecimen­to e da retórica jurídica na sociedade. E, também, de compreende­r por que nenhuma decisão judicial é capaz de alcançar unanimidad­e entre operadores do Direito e a opinião pública, como poderá ser visto quando o STF julgar novos recursos do ex-presidente da República.

Formas pretensios­as de expressão tornam hermético o discurso jurídico (o ‘juridiquês’)

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