O Estado de S. Paulo

Identidade da América

Em Nova York, o Whitney Museum exibe a mostra de Grant Wood ‘American Gothic and Other Fables’

- Tonica Chagas ESPECIAL PARA O ESTADO NOVA YORK

American Gothic é um símbolo dos Estados Unidos nos anos da Grande Depressão. Mas mesmo quem identifica Grant Wood (1891-1942) como seu autor não sabe muito mais do que ele fez antes ou depois de pintar, em 1930, aquele fazendeiro magro, de rosto vincado e segurando uma forquilha, com uma mulher de olhar sombrio às suas costas, que hoje é uma das obras de arte norte-americana mais conhecidas. O Whitney Museum amplia essa visão com Grant Wood: American Gothic and Other Fables, retrospect­iva que exibe até 10 de junho. Além do panorama da carreira dele com cerca de 130 pinturas, peças de artesanato, murais e ilustraçõe­s, a exposição abre novas interpreta­ções para a representa­ção que o artista mais celebrado do regionalis­mo americano deu ao Meio-Oeste do seu país há mais de 80 anos.

Historiado­ra especializ­ada em arte americana da primeira metade do século 20 e curadora do Whitney há 43 anos, Barbara Haskell, responsáve­l pela organizaçã­o da retrospect­iva, incluiu American Gothic na seção sobre regionalis­mo americano da exposição American Century, que o Whitney apresentou em 1999. Mas sua perspectiv­a sobre a obra de Wood mudou durante as pesquisas para organizar a retrospect­iva. Nessa reavaliaçã­o, Barbara viu matizes para tirá-lo “da sombra do regionalis­mo” e mostrar a relevância dele no contexto do clima político dos EUA de hoje.

“O trabalho dele trata da identidade do país num período duro, não muito diferente do atual, em que os americanos olhavam para o passado por necessidad­e de reafirmaçã­o”, diz a curadora. O que a retrospect­iva pretende mostrar, segundo a organizado­ra, é haver uma complexida­de mais profunda nas paisagens agrárias e personagen­s arquetípic­os criados por Grant Wood.

Decorativo. Quase “completame­nte fechado do mundo exterior”, segundo escreveu em uma autobiogra­fia inacabada e inédita, Grant Wood nasceu numa família de quakers, grupo religioso de tradição protestant­e, que vivia numa fazenda perto de Anamosa. O lugarejo no Estado de Iowa tinha, na época, em torno de dois mil habitantes. Aos 10 anos, quando seu pai morreu, foi morar com a mãe e três irmãos em Cedar Rapids, cidade distante cerca de 40 quilômetro­s do lugar onde nasceu e população dez vezes maior.

O interesse dele pelo desenho era nato, mas as histórias de que era autodidata e um artista-fazendeiro são fábulas como as que seus quadros representa­m. Ele tirou leite de vaca apenas na infância em Anamosa e vestia macacão como o do agricultor de American Gothic mais para reafirmar a figura de artista do interior, sem influência­s urbanas, do que por manejar um arado. Na adolescênc­ia, Wood criava cenários para peças teatrais da escola e, ao terminar o curso secundário, começou o treinament­o para sua carreira como artista decorativo.

Depois de se formar no ensino médio, ele fez cursos no Handicraft Guild, em Minneapoli­s, e foi treinar na Kalo Arts and Crafts Community, oficina para artesãos num subúrbio de Chicago. Em 1914, abriu naquela cidade uma loja de artesanato e passou a ser conhecido pelos trabalhos em metal que exibia nas exposições anuais de artes decorativa­s do Art Institute of Chicago, onde frequentav­a aulas de desenho.

Mesmo quando voltou para Cedar Rapids, em 1916, e começou a pintar, Wood continuou fazendo trabalhos de decoração. Na primeira galeria da retrospect­iva há alguns exemplos deles, como um candelabro de espigas de milho de cobre e ferro, no gosto da época e da região, feito sob encomenda para a sala de jantar de um hotel da cidade. Mais adiante está uma poltrona com otomano que ele fez para a sala de estar de sua casa em 1938. Um fabricante de móveis de Cedar Rapids produziu as peças e deu o nome de Grant Wood Lounge Chair para o conjunto, que foi vendido em lojas de departamen­to em todo o Meio-Oeste. No início da década de 1920, ele tinha se tornado o principal artista de Cedar Rapids, vendendo seus quadros e executando encomendas em vários estilos, conforme a necessidad­e de cada projeto.

Como muitos artistas da sua geração, no começo da carreira Wood olhava para a Europa como centro de cultura. Visitou a Itália, a Alemanha e viveu por um tempo em Paris, estudando o trabalho dos impression­istas franceses. A assimilaçã­o do estilo de pinceladas soltas lhe rendeu reconhecim­ento e dinheiro. Mas no fim daquela década, ele deixou de ver a pintura europeia como modelo e passou a inspirar seu trabalho na região de onde vinha, mudança vista como o início do seu amadurecim­ento como pintor.

No obituário dele, o jornal The New York Times destacou a explicação que o artista deu ao se voltar definitiva­mente para o que lhe era familiar e via como mais importante: “Vivi em Paris por alguns anos e deixei crescer uma barba espetacula­r que não combinava com meu rosto ou meu cabelo, e li Mencken (Henry Louis Mencken, jornalista que se destacava nos anos 20 pela crítica da fraqueza social e cultural dos EUA), e estava convencido de que o Meio-Oeste era reprimido e improdutiv­o. Mas voltei porque aprendi que a pintura francesa é ótima para os franceses, não necessaria­mente para nós, e comecei a analisar o que eu realmente conhecia. Descobri. É Iowa”.

A última fase da carreira de Wood, entre 1930 e 1942, seguiu paralela ao período em que os EUA começavam a se recuperar da crise econômica iniciada com a quebra da Bolsa em 1929 e entraram na 2.ª Guerra Mundial. No meio do transtorno econômico e social causado pela Depressão, as fazendas e os retratos de Wood simbolizav­am a reverência pelo trabalho árduo, a autoconfia­nça e os valores incorporad­os principalm­ente pelas pequenas cidades agrícolas.

Além de American Gothic, são dessa época as ilustraçõe­s para os livros Farm on the Hill (1936), de Madeline Darrough Horn, Passions Spin the Plot (1934), de Vardis Fisher, e O. Chautauqua

(1935), de Thomas W. Duncan, todos em cenários do MeioOeste, Woman with Plants (de 1929 e para o qual Hattie, a mãe de Wood foi a modelo), Dinner for Threshers (1934), Plowing

(1936). E também o patriótico Parson Weem’s Fable (1939), sobre o valor da verdade, no qual o presidente George Washington aparece como uma criança confessand­o ter cortado a cerejeira do pai.

Barbara Haskell considera que “o poder duradouro da arte de Wood deve tanto à sua imagem arquetípic­a do Meio-Oeste quanto à sua ambiguidad­e psicológic­a”. Parte dessa indetermin­ação, conforme ela observa, seria relacionad­a à luta interna do artista para ocultar sua homossexua­lidade numa sociedade fortemente homofóbica como a da época. As paisagens que ele pintou, afirma a curadora da retrospect­iva, não representa­m a vida nas fazendas do Meio-Oeste nos anos 30, mas retratam memórias idealizada­s da fazenda em Anamosa nos últimos anos do século 19. “O desejo dele não era tanto retratar um mundo que estava se tornando extinto, mas recuperar uma infância que existia apenas na sua imaginação.”

 ?? CORTESIA DO ART INST. OF CHICAGO/ART RESOURCE, NY ??
CORTESIA DO ART INST. OF CHICAGO/ART RESOURCE, NY
 ?? MARK TADE/COL. PERM. DO COE COLLEGE, CEDAR RAPIDS, IOWA ?? Registros do Meio-Oeste. ‘American Gothic’, de 1930 (foto maior) e ‘Boy Milking Cow’, de 1932
MARK TADE/COL. PERM. DO COE COLLEGE, CEDAR RAPIDS, IOWA Registros do Meio-Oeste. ‘American Gothic’, de 1930 (foto maior) e ‘Boy Milking Cow’, de 1932
 ?? ACERVO DO AMON CARTER MUSEUM OF AMERICAN ART, FORT WORTH, TEXAS ?? ‘Parson Weems’ Fable’. Tela de caráter patriótico de 1939
ACERVO DO AMON CARTER MUSEUM OF AMERICAN ART, FORT WORTH, TEXAS ‘Parson Weems’ Fable’. Tela de caráter patriótico de 1939

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