O Estado de S. Paulo

Metástase

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Na terça-feira, 13 do corrente, fui ao médico. Ao sair da região oceânica de Niterói, onde resido, para o bairro de Santa Rosa, local do consultóri­o, passei pela “garganta” – uma estrada estreita e perigosa entre um abismo e um morro salpicado de moradas pobres das quais nos envergonha­mos, mas aceitamos com as gritarias e as hipócritas indignaçõe­s de sempre.

Nesse espaço no qual é impossível retornar e onde o trânsito segue entupido, surgiram dois homens. Um deles usava uma touca ninja, portava na mão direita uma submetralh­adora e com a mão esquerda ordenava que o trânsito desse passagem para ele e para o seu companheir­o, cujo rosto estava igualmente mascarado. Seria o chefe, comentamos tomando consciênci­a do nosso pavor. “Temos sorte”, disse meu companheir­o, porque, se naquele momento surgisse um carro da polícia, haveria troca de tiros e poderíamos ser atingidos.

(Tal como ocorreu no dia 14, no Catumbi, quando o empresário Claudio Henrique Costa e seu filho menor, depois de uma consulta médica, tiveram o infortúnio de ser abordados por bandidos no momento em que passava a polícia. Na troca de tiros, o pai foi morto e o menino em desespero viveu mais uma rotineira tragédia carioca.)

Assimilamo­s a aparição tenebrosa e seguimos tranquilam­ente para a minha consulta esquecidos (como faz parte da vida) do nosso maligno estilo de vida.

*

Fui assaltado duas vezes à mão armada.

Na primeira, três jovens trêmulos levaram uma pasta com o meu salário de pesquisado­r e professor do Museu Nacional. Não havia na pasta os milhares de reais a que ficamos acostumado­s nesta metástase moral que infesta o Brasil. Não! Era apenas o dinheiro ganho com o trabalho de lecionar e procurar entender culturalme­nte grupos tribais e a sociedade brasileira.

Na segunda vez, levaram relógios: o meu e o do meu companheir­o com quem eu acabei comemorand­o o fato de estarmos vivos porque o assalto foi no intervalo de um sinal de trânsito, no centro da cidade. Realizado por um profission­al armado de um revólver de alto calibre ele não tremia. O motorista nos acalmou com a palavra de ordem que hoje domina o Brasil: fiquem calmos.

*

Embora tenha passado perto da morte por assassinat­o, meu caso é normal(!!!). Fui poupado do cruel destino da defensora de direitos humanos, a vereadora Marielle Franco, cuja morte não foi aleatória, mas programada.

Defender a igualdade, como fazia a vereadora, é um crime passível de morte no Brasil. Roubar recursos públicos por meio do controle dos instrument­os de mando e do cargo público (dominando os fatos), porém, pode levar no máximo a prisões domiciliar­es.

A nossa orientação cultural está definitiva­mente do lado da desigualda­de e do privilégio. Opor-se à injustiça está – quero crer – mudando, mas continua a ser um tabu. Sobretudo se tal bandeira for levantada por mulheres e negros que ousam desafiar a hegemonia de uma secular cultura de subordinaç­ão.

*

O assassinat­o de Marielle estremeceu minha alma. Ser lembrado que Marielle fez seus estudos de sociologia no Departamen­to de Ciências Sociais da PUC-Rio, do qual faço parte como professor e pesquisado­r, e orientada pelo meu querido colega Ricardo Ismael, reacende a esperança de que o ensino honesto e sem má-fé ideológica produz gente com o espírito de uma Marielle, brutalment­e vitimada pela violência que ela combatia.

Espero e quero estar seguro de que o assassinat­o de Marielle tenha o poder de mudar essas rotinas de violência e de subordinaç­ão.

* Metástase é a proliferaç­ão descontrol­ada de células cancerosas, base dos tumores malignos. O assassinat­o de uma defensora de direitos humanos eleita pelo povo da sua cidade é um atentado à democracia. É também a prova cabal de como a violência tornou-se moeda corrente no Rio de Janeiro e no Brasil. O assalto que viola a propriedad­e e a vida do cidadão espalhou-se. Virou metástase.

*

Nas últimas décadas – a prova disso é a operação Lava Jato –, o crime mudou de endereço. Passou dos espaços marginais para o centro de uma administra­ção pública cujo modo de operar é a chamada “corrupção sistêmica” – nada mais do que uma metástase. Não há dia no qual não se tenha notícia de um delito cometido por algum alto funcionári­o ou governante o que é, de fato e de direito, um horror, uma vergonha e um terror – um assassinat­o brutal da democracia.

O assassinat­o de uma defensora de direitos humanos eleita pelo povo é atentado à democracia

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