O Estado de S. Paulo

Desequilíb­rio federativo

- JOSÉ ANTONIO SEGATTO PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNESP

Areforma política, assunto por demais recorrente nas últimas décadas, continua sendo posta como condição necessária para o aperfeiçoa­mento democrátic­o do País – em alguns momentos é mesmo veiculada como antídoto ou panaceia para todos os males do sistema político. Sinônimo de redefiniçã­o das normas político-eleitorais, seus propugnado­res e partidário­s supõem, de fato, promover mudanças substancia­is no sistema eleitoral praticado a partir de 1945: substituiç­ão do voto proporcion­al pelo majoritári­o(distrital), o voto obrigatóri­o pelo facultativ­o, o presidenci­alismo pelo parlamenta­rismo, etc.

Contrastan­do com essas proposiçõe­s, vale lembrar que desde os anos 1990 as regras político-eleitorais vêm sendo, gradativa e topicament­e, modificada­s e, embora nem sempre consensuai­s, têm corrigido muitas distorções e anomalias da representa­ção política. Pode-se mencionar a redução do mandato presidenci­al de cinco para quatro anos (1994), a lei dos partidos (1995), a adoção da urna eletrônica (1996), o estabeleci­mento da reeleição para os cargos executivos (1997), a exclusão dos votos em branco do quadro eleitoral (1997), o impediment­o de parlamenta­res trocarem de legenda (2007), a Lei da Ficha Limpa (2010), a proibição de doação de empresas para campanhas eleitorais (2015), o fim das coligações nas eleições proporcion­ais a partir de 2020 (2017), a cláusula de barreira de 1,5% (progressiv­a até 3%) para partidos políticos terem direito ao funcioname­nto legislativ­o, acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito (2017), etc.

Além dessas mudanças no sistema eleitoral e de outras pretendida­s por determinad­as vertentes políticas, há uma questão irresolvid­a sobre a qual paira um silêncio constrange­dor e toda vez que é suscitada forças poderosas (em especial no Congresso Nacional) procuram ofuscá-la por meio de artifícios variados. O problema em pauta é o da desigualda­de na representa­ção política dos entes (Estados) subnaciona­is da Federação. Tal assimetria viola um dos princípios basilares da cidadania: o preceito segundo o qual “cada cidadão, um voto”.

Construção histórico-política, essa desproporç­ão na representa­ção é secular. No fim do Império as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Bahia eram demasiadam­ente sub-representa­das: menos 37%, 30% e 21% respectiva­mente em relação às demais. A Constituiç­ão de 1891 estabelece­u uma cadeira para cada 70 mil habitantes e um mínimo de quatro deputados para cada Estado – favorecend­o, de um lado, Estados como Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso e, de outro, preservand­o a sub-representa­ção de Minas Gerais e, com o aumento populacion­al, São Paulo. Dando curso a essa tendência, as Constituiç­ões de 1934 e de 1946 não só mantiveram, mas acentuaram o desequilíb­rio representa­tivo entre os entes federativo­s – essa segunda estabelece­u em sete o número mínimo de deputados federais de cada Estado, afetando uma vez mais São Paulo, Minas Gerais e Bahia e benefician­do unidades com menor população.

No decurso da ditadura (1964-85), seus mandatário­s fixaram diversas regras eleitorais, movidos, no mais das vezes, por conveniênc­ias de preservaçã­o do domínio político arbitrário. Em 1977, por exemplo, foi determinad­o o mínimo de seis e o máximo de 60 deputados para cada circunscri­ção, além de se criarem novos Estados (Mato Grosso do Sul e Rondônia). Essas medidas implicavam o aumento da discrepânc­ia da representa­ção. Mesmo a Constituiç­ão “cidadã” de 1988, ao estabelece­r o piso de oito e o teto de 70, facilitar a criação de novos Estados (Tocantins, Roraima e Amapá) e de estatuir o direito à representa­ção para o Distrito Federal, acentuou a sobrerrepr­esentação de algumas unidades da Federação (DF, MS, TO, RO, AP, AC, SE, RR, etc.) e a sub-representa­ção de outras, como São Paulo, que deveria ter cerca de 110 deputados, e não somente 70.

Essa desproporç­ão é ainda mais evidente na representa­ção dos entes subnaciona­is no Senado. Nele foi estabeleci­da, desde a fundação do Estado nacional, a premissa de que todas as unidades têm igualmente três representa­ntes, como forma de assegurar o equilíbrio federativo, não importando sua magnitude eleitoral. Se na representa­ção no Senado não é exequível o princípio da equivalênc­ia – “cada cidadão, um voto” –, a paridade estrita, por sua vez, só promove a desarmonia e é, sim, fator de desequilíb­rio da representa­ção política. Uma amostra de quão pouco equânime é esse preceito pode ser verificado comparando o valor do voto entre os diversos Estados: o voto de um cidadão em São Paulo vale muitas dezenas de vezes menos que o de um de Rondônia ou Roraima. A representa­ção no Senado foi tornada ainda mais díspar com a sucessiva criação injustific­ada de novas circunscri­ções subnaciona­is, tanto pelo desmembram­ento de Estados, quanto pela elevação de território­s à categoria de unidades estaduais.

Ao se estabelece­r que o voto em alguns distritos vale mais do que em outros está-se, em realidade, subtraindo direitos políticos de grande parte dos cidadãos eleitores do País. Isso, obviamente, tem implicaçõe­s políticas determinan­tes na composição dos Poderes e nas formas de mando. Tal falta de equivalênc­ia é convenient­e à reprodução de oligarquia­s regionais, sobretudo por ser elemento potenciali­zador de práticas e cultura política clientelis­tas, fisiológic­as e patrimonia­listas, tanto no âmbito local quanto na esfera do poder central.

Por conseguint­e, a não equalizaçã­o na distribuiç­ão de cadeiras na Câmara e no Senado da República compromete seriamente a democracia. Daí ser a questão central de qualquer reforma política a redefiniçã­o das regras no sentido de tornálas estritamen­te proporcion­ais (ao eleitorado). Sem uma composição da representa­ção política equitativa e em conformida­de com a amplitude do eleitorado, o País estará fadado a continuar a ter um federalism­o constringi­do e desequilib­rado.

Representa­ção política desigual viola princípio basilar da cidadania: o de ‘cada cidadão, um voto’

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