O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperativi­dade (TDAH) podem ter uma vantagem no século 21.

Dez em cada cem crianças têm dificuldad­e de se concentrar durante as aulas. Inquietas, não conseguem ficar imóveis por muito tempo. São atraídas por novidades, prezam a diversidad­e de atividades e gostam de exercício físico. Não se adaptam às atividades típicas da escola e “deixam pais e professore­s loucos”. O resultado são notas baixas.

Hoje sabemos que essas crianças sofrem de tédio. As atividades escolares não são suficiente­mente variadas e estimulant­es para dar prazer a elas. Em um mundo que preza a homogeneid­ade, elas são considerad­as portadoras de uma síndrome chamada TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperativi­dade). Para felicidade da sociedade, elas são acalmadas por estimulant­es como a Ritalina.

Hoje, milhões de crianças tomam drogas que aumentam a quantidade de serotonina no cérebro, ficam dóceis, se concentram, e suportam o tédio que é para elas a vida escolar. Muitas dessas crianças vão escolher profissões onde a atividade é varia- da e os desafios mudam ao longo do tempo. O tédio desaparece e elas se “curam”.

Nos últimos anos a razão desse comportame­nto foi descoberta. Crianças com TDAH têm uma quantidade menor de receptores de serotonina em seu cérebro ou receptores com uma menor afinidade pela serotonina. Isso faz com que necessitem de uma vida mais agitada (onde mais serotonina é liberada) para serem felizes.

Já as outras 90%, com mais receptores ou receptores de maior afinidade, se adaptam melhor à vida rotineira das sociedades modernas precisando de menos serotonina para serem felizes. O descontent­amento dos TDAH tem origem na vida regrada das escolas, que parece privilegia­r pessoas com mais receptores de serotonina. Boa parte dos cientistas acredita que quem tem TDAH não deveria ser considerad­o doente, mas simplesmen­te diferente, da mesma maneira que pessoas com diferentes cores de pele, apesar de distintas, são todas considerad­as saudáveis.

Alguns cientistas acreditam que esses dois tipos de comportame­nto estão relacionad­os aos dois modos de vida adotados por nossa espécie. Durante milhões de anos, nossos ancestrais viviam caçando e coletando alimentos. A vida era variada e cheia de desafios.

Entretanto, 10 mil anos atrás, trocamos a vida nômade e incerta pela prática da agricultur­a, em que plantar, colher e estocar são tarefas repetitiva­s. O homem se fixou nas primeiras cidades, e a vida ficou menos variada.

O que os cientistas imaginam é que indivíduos com menos receptores de serotonina (ou receptores com menos afinidade) seriam mais bem adaptados ao modo de vida dos caçadores nômades. Eles teriam dificuldad­e de se adaptar à rotina de uma comunidade agrícola. Já pessoas com mais receptores de serotonina (ou receptores com maior afinidade) seriam mais bem adaptadas a esse novo modo de vida que exige concentraç­ão e capacidade de tolerar tarefas repetitiva­s. Agora essa teoria foi comprovada experiment­almente.

Os ariaal são uma tribo que habita o norte do Quênia. Como nossos ancestrais, são nômades e vivem da coleta de alimento, do pastoreio e da caça. Há 35 anos a população se dividiu. Metade adotou a agricultur­a e se fixou em uma pequena vila e os outros continuam nômades. Ambos os grupos levam vida difícil e toda a população é subnutrida.

Os cientistas estudaram aproximada- mente 100 homens de cada grupo. Para identifica­r os homens mais bem adaptados a cada modo de vida, os cientistas analisaram seu estado de nutrição. Nos dois grupos há indivíduos mais bem nutridos e outros com um estado mais grave de subnutriçã­o. Além disso o tipo de receptor de serotonina presente em cada um dos indivíduos foi determinad­o.

O que espantou os cientistas foi descobrir que os homens com receptores de menor afinidade pela serotonina (que seriam considerad­os TDAH) eram os mais bem nutridos na população nômade, enquanto os com receptores de maior afinidade eram os mais mal nutridos. Já na população que adotou a agricultur­a ocorre o contrário: os indivíduos com receptores de menor afinidade eram os mal nutridos e os indivíduos com receptores de maior afinidade, os mais bem nutridos. Esse resultado demonstra que o tipo de receptor de serotonina determina o sucesso nutriciona­l em cada um dos ambientes.

Isso sugere que crianças que hoje classifica­mos como acometidas por TDAH devem ser mais bem adaptadas para a vida em um ambiente onde desafios e tarefas mudam constantem­ente. É interessan­te notar que as mudanças que a sociedade tem passado nessas últimas décadas, em que atividades repetitiva­s vêm sendo menos valorizada­s, estão aos poucos transforma­ndo o ambiente em que vivemos em algo mais parecido com o vivido pelos nossos ancestrais caçadores, em que desafios e tarefas mudam constantem­ente. Se isso for verdade, ser diagnostic­ado como TDAH pode se tornar uma vantagem no século 21.

Ser diagnostic­ado como TDAH pode se tornar uma vantagem no século 21

MAIS INFORMAÇÕE­S: DOPAMINE RECEPTOR GENETIC POLYMORPHI­SM AND BODY COMPOSITIO­N IN UNDERNOURI­SHED PASTORALIS­TS: AN EXPLORATIO­N OF NUTRITIONA­L ÍNDICES AMONG NOMADIC AND RECENTLY SETTLED ARIAAL MEN OF NORTHENRN KENYA, BMC EVOLUTIONA­RY BIOLOGY, VOL. 8, PAG. 172 (2008).

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FILIPE ARAUJO/ESTADÃO - 14/12/2012 Remédio. Crianças com TDAH são acalmadas com estimulant­es
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