O Estado de S. Paulo

Da prisão após decisão de segundo grau

- LUIZA NAGIB ELUF

Apolêmica criada no Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da prisão ou não de réus condenados em segundo grau merece a reflexão de todos. Não apenas dos acusados, que estão com a espada sobre a cabeça; não apenas dos juízes, que estão com a caneta nas mãos; não apenas dos jornalista­s que opinam sobre tudo e sobre todos; e não apenas dos advogados que militam incessante­mente em todos os lados dessa polêmica. Tratase de uma discussão de caráter geral, que vai muito além de mera interpreta­ção de normas jurídicas, mas de relativiza­r o princípio consolidad­o nas democracia­s da presunção de inocência.

É hora de nossas instituiçõ­es organizare­m as ideias para dar um rumo ao Brasil, que já há muito tempo se tornou terra em transe. Qualquer que seja a definição do Supremo, que tanto se aguarda, ela tem de ser séria, bem sopesada e, acima de tudo, justa.

Nesse momento, pouco deve importar o fato de Lula poder ou não ser preso, pois é completame­nte desaconsel­hável decidir casuistica­mente, ou seja, consagrar uma norma geral para atender a um caso concreto específico. Prender o ex-presidente para dar o bom exemplo ou para satisfazer a ânsia punitiva de muitos, ou deixá-lo em liberdade para aguardar o trânsito em julgado dos processos contra si instaurado­s, conforme determinam o Código de Processo Penal e a Constituiç­ão federal, essa é uma questão que está posta, mas não é a única que importa. É grande a quantidade de pessoas na mesma situação, espalhadas pelo País.

Diante da revolta social causada por numerosas denúncias de malversaçã­o do dinheiro público, a população vem gritando por justiça, com contundent­es apelos à punição severa dos culpados. É nesse momento que o habeas corpus se faz necessário, pois ele não absolve ninguém, apenas evita a punição antes da certeza cabal da culpabilid­ade.

O princípio da presunção de inocência vigora no Direito pátrio desde a instauraçã­o da democracia e foi consagrado explicitam­ente na Constituiç­ão federal de 1988, em seu artigo 5.°, inciso LVII, que diz que “nin- guém será considerad­o culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia”. Maior clareza que a desse texto não existe. Trata-se de uma determinaç­ão e de uma garantia. Ou obedecemos a essa regra fundamenta­l ou perdemos os limites democrátic­os e instauramo­s uma Justiça despótica.

Aury Lopes Júnior argumenta que “a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja abordado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele. Na dimensão interna, esse dever é imposto ao juiz, que deve ater-se às provas trazidas pela acusação, à qual incumbe comprovar a culpabilid­ade do réu (que, lembremos, tem presunção de ino- cência). Na dimensão externa do processo, a presunção de inocência exige uma proteção com relação à publicidad­e e à prévia estigmatiz­ação do acusado. Assim, os limites democrátic­os impõem adoção de medidas contrárias à abusiva exploração de um fato criminoso nos meios de comunicaçã­o, protegendo­se, também, o próprio processo judicial da especulaçã­o que possa ferir a garantia constituci­onal da presunção de inocência.

Por sua vez, o Código de Processo Penal, seguindo os ditames da Lei Maior, determina em seu artigo 283 que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamenta­da da autoridade judiciária competente, em decorrênci­a de sentença condenatór­ia transitada em julgado, ou no curso da investigaç­ão ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Está evidente a cautela de nossa legislação com relação às prisões. A controvérs­ia que se instalou após a decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada em 2016 por estreita maioria, que autorizou o encarceram­ento após decisão condenatór­ia proferida em segundo grau, sem necessidad­e de trânsito em julgado, apenas demonstra que a medida do Pretório Excelso confrontou uma garantia de há muito consagrada, de forma a provocar instabilid­ade social e jurídica, além de grande inconformi­smo. Desde o momento da nova concepção adotada, a discussão não mais cessou. E, agora, vê-se a instabilid­ade crescer dentro do próprio STF, que já esbarra em controvérs­ias insuperáve­is internamen­te.

É possível deduzir que, com essa guinada surpreende­nte de permitir a prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatór­ia, a Suprema Corte buscou superar deficiênci­as estruturai­s do Poder Judiciário, especialme­nte em relação à morosidade na prestação da justiça, jogando o ônus da sua própria ineficiênc­ia nas costas da sociedade, ao restringir direitos fundamenta­is. Trocando em miúdos, as dificuldad­es encontrada­s para fazer girar a máquina das decisões em tempo razoável desembocar­am nas restrições às garantias individuai­s consagrada­s. Assim, difícil decidir sobre o que é, de fato, pior, mas ouso dizer que em termos de cerceament­o da liberdade de ir e vir toda cautela é pouca.

A Constituiç­ão do Brasil, a nossa progressis­ta Carta Magna de 1988, aquela escrita com o sangue derramado dos presos do regime militar, teve como escopo limitar os poderes do Estado, garantindo a plena cidadania a todos, sem exceção, e instaurand­o a democracia. Essa mesma Constituiç­ão, que alguns abominam e outros idolatram, embora possa ter alguns defeitos, ainda está em vigor. E é clara sobre o momento de se proceder à execução da pena privativa de liberdade imposta ao réu processado: após o trânsito em julgado da sentença condenatór­ia. Cabendo ao Supremo as decisões sobre todo e qualquer assunto de natureza constituci­onal, compete a ele manifestar-se sobre a polêmica que se instalou.

A presidente Cármen Lúcia está sendo cautelosa e ponderada, o que é positivo, mas o impasse não se pode arrastar por muito tempo. É do STF que se espera seja decretado o fim da era da incerteza.

O impasse não se pode arrastar, do Supremo se espera a decretação do fim da era da incerteza

ADVOGADA CRIMINALIS­TA, TEM SETE LIVROS PUBLICADOS, DENTRE OS QUAIS ‘A PAIXÃO NO BANCO DOS RÉUS’

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