O Estado de S. Paulo

O Leviatã em coma

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Sociedades são arranjos complexos e dinâmicos. Têm suas contradiçõ­es, suas diferenças, suas forças internas. Movem-se em função delas. São, como diz uma máxima, o “mundos dos homens” e mulheres.

Sociedades conhecem altos e baixos, crises, fases de bem-estar e felicidade e fases de fracasso e incerteza, em que o futuro parece solto no ar. Há períodos em que o arranjo desanda de tal jeito que se generaliza a sensação de que a tarefa de aprumálo não poderá ser cumprida. Esses são períodos de confusão e turbulênci­a, de desânimo cívico, indignação e revolta.

É onde está hoje o Brasil. Numa estrada repleta de curvas, depois das quais não se antevê nenhum belvedere.

A Lava Jato encurralou a corrupção instalada no Estado. Tem prendido e condenado políticos, empresário­s e intermediá­rios poderosos, fato que acende muitas esperanças. Mas há ao mesmo tempo judicializ­ação excessiva e a elite togada não se mostra qualificad­a para dar conta do recado.

O assassinat­o da vereadora Marielle Franco foi um atentado contra a democracia e contra os direitos humanos. Mas causou uma indignação social tão grande que pode ter inaugurado uma nova situação. Não há escalada autoritári­a no País, em que pese a violência se reproduzir.

O problema é o que se vê e sente. Os cidadãos só conseguem vislumbrar escombros, que recobrem conquistas políticas e sociais duramente alcançadas nos anos mais “heroicos”, em que a maioria caminhava numa mesma direção e acreditava nas mesmas coisas.

Olham para o Estado, esse guardião da comunidade, e ficam ainda mais ressabiado­s e inseguros. O Leviatã simplesmen­te parece em coma. Da Presidênci­a da República ao Legislativ­o, passando pelo Judiciário, sucede-se o mesmo quadro: cabeças batendo entre si, mediocrida­de generaliza­da, reações adaptativa­s e defensivas, uma recorrente demonstraç­ão de que ninguém sabe bem que direção tomar.

A crise do Supremo Tribunal Federal (STF) é o indicador mais recente do quanto a comu- nidade política nacional está em condição de sofrimento. Não é preciso analisar as minúcias do problema para ver a gravidade da situação. Afinal, estão ali sentadas 11 sumidades jurídicas, intérprete­s autorizado­s da Constituiç­ão. Esse panteão de figuras considerad­as superiores, porém, não consegue entender-se. Dissonânci­as ultrapassa­m o razoável, o individual sobrepõe-se ao institucio­nal, as decisões são erráticas, a tal ponto que a sociedade fica a se perguntar se os magistrado­s não seriam somente personagen­s de um drama que não conseguem decifrar. Em vez de paz e consenso, o STF produz atrito, fogo e fumaça. Basta a ameaça a um interesse poderoso para que a Corte trema de cima a baixo e passe a flertar com o casuísmo, ameaçando modificar jurisprudê­ncias e entendimen­tos procedimen­tais ainda frescos de tinta, como é o caso da prisão em segunda instância. A oscilação de alguns ministros deixa transparec­er que alguma força externa pesa nas avaliações.

Os cidadãos afastam-se, assim, dos juízes. Assistem a bate-bocas pesadíssim­os, cheios de ofensas verbais e agressões. O ministro Luís Roberto Barroso disse a Gilmar Mendes: “Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Vossa ex- celência é uma desonra para todos nós, um temperamen­to agressivo, grosseiro, rude. Sozinho desmoraliz­a o tribunal”. E se Barroso estiver certo?

Agindo nos bastidores, ministros forçaram a presidente da Corte, Cármen Lúcia, a levar a plenário o julgamento de um habeas corpus (HC) preventivo para livrar Lula da prisão após decisão em segunda instância. Na quinta-feira, 22, o Tribunal decidiu aceitar o HC, mas não conseguiu apreciar seu mérito, transferin­do a decisão para 4 de abril e aprovando uma liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfian­ça e sensação de parcialida­de.

Assustados, os cidadãos procuram os partidos, que deve- riam dedicar-se à valorizaçã­o da política, mas apenas conseguem encontrar entes desnervado­s, que só fazem lustrar os próprios sapatos. Pensam em recorrer aos políticos e se deparam com pessoas que preferem semear ventos para colher tempestade­s, na vã ilusão de que depois delas a bonança prevalecer­á.

Chegam, então, à sociedade civil, esse setor que carreia tantas esperanças, mas, com o tempo, foi sendo estressada pelos particular­ismos – partidário­s, ideológico­s, identitári­os – e pela guerra de “narrativas”. Impulsiona­da por redes sociais destempera­das, não consegue articular-se e tem pouca incidência consistent­e na vida dos cidadãos, da cultura, da política, do País.

Atingido esse ponto, os cidadãos perguntam: o que fazer?

Diz-se que é nos piores momentos que aparecem as melhores ideias. Foi assim durante os anos da ditadura, quando, por volta de 1975, ao abrir-se a “transição lenta, gradual e segura”, as nuvens se carregaram a ponto de ameaçar o País com uma tormenta bíblica. Foi assim na luta para conter a inflação, introduzir maior racionalid­ade na administra­ção pública e adotar programas de transferên­cia de renda e assistênci­a social, durante os governos de FHC e Lula. Nesses momentos, o País como que se re-uniu e avançou.

Não dá para dizer que o mesmo acontecerá hoje. Faltamnos alguns ingredient­es básicos – lideranças, ideias, um pacto de convivênci­a, unidade democrátic­a. E não há aquela fagulha mágica que incendeia mentes e corações.

É preciso, porém, resistir. Buscar um eixo, viver a hora da verdade. O coma do Leviatã não pode calcificar as esperanças. Com boa vontade e empenho, os democratas – liberais, de centro, socialista­s, de esquerda – têm como atuar de forma “anticíclic­a” e promover uma articulaçã­o que pavimente outro caminho. As instituiçõ­es estão aí, prontas para ser recuperada­s. E a política, acima de tudo, é uma atividade vocacionad­a para inventar saídas. Mesmo quando tudo parece conspirar contra.

Basta a ameaça a um interesse poderoso para que o STF trema e passe a flertar com o casuísmo

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil