O Estado de S. Paulo

Evolução e desejo

- BLOG: HTTP://BLOG.ESTADAO.COM/BLOG/ MARCELO RUBENS PAIVA E-MAIL: MARCELO.RUBENS.PAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

Margaret Atwood, autora de livros que têm sido adaptados para séries em canais streamings, como Alias Grace (Netflix) e Handmaid’s Tale (Hulu), me l embra Arthur Clarke (2001 – Uma Odisseia no Espaço) e Philip Dick ( Blade Runner): deveria ganhar o Prêmio Nobel de criativida­de, se existisse.

Ao menos, ela ganhou o Prêmio Arthur Clarke e o Booker Prize de 2000. E The Handmaid’s Tale, livro de 1985, que virou filme e ópera, ganhou Emmy e Globo de Ouro de 2017 e 2018 de melhor série dramática. Merecidos. É incrivelme­nte genial e atual.

Foi escrito antes dos fundamenta­listas do Taleban e Estado Islâmico imporem regras sociais duríssimas e arcaicas, especialme­nte às mulheres. Talvez tenha sido inspirado no retorno do Aiatolá Khomeini ao Irã em 1979, no vácuo do poder deixado pelo destroname­nto do Xá Reza Pahlavi, e no nascimen- to da República Islâmica baseada numa leitura radical do Alcorão e da jihad, a guerra santa muçulmana.

Mulheres foram subjugadas e obrigadas a usar o hijab (lenço). A onda islâmica atravessou fronteiras. No Afeganistã­o, tiveram que parar de estudar. Na rival Arábia Saudita, nem dirigir podiam.

Em Hadmaid’s Tale, os Estados Unidos passaram por guerra civil. Apenas Chicago resiste a uma corrente evangélica radical que tomou o poder numa antes sociedade caótica, poluidora, hedonista, mudou a bandeira para uma com duas estrelas e impôs duras regras sociais moralizant­es.

Homossexua­is, médicos que trabalham em clínicas de aborto e católicos romanos são enforcados e expostos publicamen­te com capuzes semelhante­s aos das vítimas do Isis. Igrejas católicas são destruídas. Cada pedra da St. Patrick’s Cathedral, de Nova York, foi jogada no Houston.

A sociedade degradada e do Tinder, e a radiação, deu em infertilid­ade das mulheres. E as que conseguem, a chance de nascer um bebê saudável é de uma para cinco. As poucas capazes de engravidar viram servas para, como ditam os ortodoxos, deitarem-se com homens para o único propósito bíblico: procriar.

Offred, ex-editora de moda, é a rebelde que, presa e doutrinada, deve usar um lenço e servir ao comandante Fred Waterford, cuja mulher é infértil. O marido copula Offred (de “offered”, oferecida?) num coito burocrátic­o. Ela não pode olhar para ele; discorre sobre as cores do papel de parede do teto. Nem tiram as roupas.

Revela-se que ela está no colo da esposa, entre suas pernas, de saia levantada, como uma extensão do aparelho reprodutor da infértil. Ao terminar, ela fica deitada. A esposa a expulsa do quarto. Offred diz: “Deitada, as chances de engravidar são maiores”.

Logo me lembrei dos livros O Macaco Nu (Desmond Morris) e Da Natureza Humana (Edward O. Wilson), que viraram best-seller nos anos 1960-70, resultado da curiosidad­e despertada pela revolução sexual, em que queríamos entender os meandros de tabus e desejos tão reprimidos no maior país católico do mundo.

Foucault, Wilhem Reich, Roberto Freire ( Sem Tesão Não Há Solução) e tratados sobre a evolução das espécies, seleção natural, foram devorados. Afinal, desculpe papai, mamãe, mas tesão, orgasmo, não é pecado: vem da genética. Sem tesão não há espécie.

Minha avó, italianinh­a de Modena, nunca viu meu avô, italiano de Bari, pelado. Nem em pé, nem sobre ela. O clitóris era, até há algumas décadas, o órgão menos estudado do corpo humano; sobre o qual há menos registros científico­s

Agora se sabe que o canal da vagina durante o coito duplica a profundida­de e lubrifica para facilitar o caminho da penetração. Os lábios vaginais, como o clitóris, incham, para quê? Aumentar o prazer.

No orgasmo, contrações ajudam a sugar para dentro o segredo contido no pênis masculino, o maior membro sexual de um símio. A maioria das primatas despreza o parceiro depois da relação.

As mulheres são as únicas do reino animal com nádegas, seios salientes e arredondad­os para a sedução. Atingem um orgasmo mais intenso que o dos homens. Como somos uma espécie ereta, não podem correr ou caminhar logo depois da fecundação: precisam continuar deitadas, contraídas, exaustas, com sono, para não deixar escapar o esperma do parceiro, não perder o que interessa, o DNA.

O clitóris tem cinco vezes mais terminaçõe­s nervosas que o pênis. Portanto, é cinco vezes mais sensível. Meu primeiro filho era uma filha, segundo poderosos ultrassons. Num feto, o clitóris nasce antes. O pênis aparece três ou quatro meses depois. O do meu filho apareceu depois.

Deduzi que o pênis é, portanto, filho de um clitóris, desenvolvi­do a partir dele, um clitóris com base. Perceba: sua ponta, os capitéis com uma voluta, tem o formato de um clitóris. A glande masculina, que manipulada dá prazer, é um clitóris menor e menos evoluído, teorizo.

A capacidade dos humanos de se reproduzir é espetacula­r. Não se sabe de outras símias que tenham orgasmos; um orgasmo que a evolução postergou para depois do gozo do macho. Não se sabe de outra espécie que conheça lábios externos, sensíveis e salientes, ou orelhas com lóbulos, verdadeiro­s receptácul­os erógenos, pequenas fábricas que, se bem manipulada­s, dão prazer.

Não se sabe de outra fêmea que faça sexo mesmo fora do período de reprodução, a ovulação, e que faça sexo durante a gravidez, ou semanas logo depois do parto. Por isso, demos certo. Enquanto primatas. Porque enquanto animais políticos...

Margaret Atwood, autora de ‘Handmaid’s Tale’, deveria ganhar Nobel de criativida­de, se existisse

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