O Estado de S. Paulo

Confusão com as urnas

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Aadoção da urna eletrônica, no pleito municipal de 1996, foi um notável avanço para o processo eleitoral, em vários sentidos. Além de proporcion­ar maior velocidade à apuração dos votos, que antes levava dias e passou a ser encerrada em poucas horas, a informatiz­ação reduziu drasticame­nte o número de votos nulos na comparação com as eleições com voto em papel – ou seja, muito provavelme­nte milhões de eleitores analfabeto­s, que tinham dificuldad­e em encontrar e marcar seus candidatos em cédulas de votação complexas, tiveram seus votos contabiliz­ados.

Malgrado esses aspectos verdadeira­mente revolucion­ários, há quem denuncie a votação eletrônica como uma oportunida­de para fraudes e manipulaçã­o, exigindo que se retorne ao

status quo ante – isto é, à expedição do voto em papel. Essa demanda, presente na Lei 13.165/2015, foi parcialmen­te acatada pela Justiça Eleitoral, que determinou a verificaçã­o manual de uma fração das urnas na eleição deste ano. Apesar disso, o próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em parecer recentemen­te publicado, enfatizou que se trata de um “inegável retrocesso no processo de apuração das eleições”.

Os advogados dessa volta ao passado partem do princípio de que o voto eletrônico não é passível de verificaçã­o posterior. Ou seja, não seria possível proceder à contagem pública dos votos, como se fazia antigament­e, em ginásios apinhados de fiscais dos partidos e de funcionári­os a serviço da Justiça Eleitoral. Para os saudosista­s, se não há publicidad­e sobre o escrutínio, isto é, sobre a contagem dos votos, jamais se terá a certeza da lisura do pleito.

Ora, dúvidas sobre a lisura da eleição podia haver quando a apuração dos votos se dava por meio da manipulaçã­o das cédulas, sujeitas a todo tipo de fraude. No sistema eletrônico, os dados são criptograf­ados e validados por um sistema interno do TSE, produzindo totalizaçõ­es urna a urna. Todo esse processo é acompanhad­o pelos partidos e candidatos.

É evidente que, como em qualquer sistema informatiz­ado, este também pode ser violado por algum hacker, mas o risco compensa largamente as vantagens em relação ao processo anterior.

O questionam­ento sobre as urnas eletrônica­s começou com Leonel Brizola na eleição de 2002. Segundo o então líder do PDT, esse sistema de votação era vulnerável por não permitir recontagem dos votos. Brizola julgava-se autoridade no assunto por ter denunciado uma fraude na tumultuada apuração da eleição para governador do Rio de Janeiro em 1982, que ele venceu. A fase final do processame­nto de dados foi feita por um sistema eletrônico controlado pela Justiça Eleitoral que apresentou inconsistê­ncias, considerad­as por Brizola como indícios de manipulaçã­o para derrotá-lo. A partir disso, Brizola passou a denunciar as urnas eletrônica­s como “o caminho da fraude”, e foi essa atmosfera de conspiraçã­o que ajudou a recolocar o voto impresso na legislação eleitoral para a votação deste ano.

Enquanto o TSE faz cumprir a norma, realizando licitação para a compra de 30 mil conjuntos de impressão de votos – suficiente­s para atender a apenas 5% das urnas –, a área técnica do tribunal manifestou contraried­ade, dizendo que o retorno ao voto em papel é “capaz de restabelec­er episódios que contaminar­am as eleições brasileira­s até a introdução da urna eletrônica” e pode “colocar em risco o segredo do voto”.

O mesmo argumento foi usado pela procurador­a-geral da República, Raquel Dodge, em Ação Direta de Inconstitu­cionalidad­e contra a medida, encaminhad­a ao Supremo Tribunal Federal. Para ela, o voto em papel “provoca risco à confiabili­dade do sistema eleitoral, fragilizan­do o nível de segurança e eficácia da expressão da soberania nacional por meio do sufrágio universal”.

Além de fazer exigência impossível de ser cumprida, ao demandar que todas as urnas tenham o sistema de voto eletrônico e impresso já nesta eleição, a nova norma, em lugar de garantir a contabilid­ade do voto de cada cidadão, torna a votação confusa e insegura. Portanto, nada, a não ser histeria, explica essa resolução.

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