O Estado de S. Paulo

A ameaça à democracia do Ocidente começa em casa

Para proteger a liberdade, é preciso melhorar instituiçõ­es, reduzir a desigualda­de e assegurar que a globalizaç­ão funcione para todos É EX-CHANCELER DE ISRAEL

- SHLOMO BEN-AMI / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Aordem liberal do Ocidente não está em crise em razão da Rússia. As democracia­s ocidentais devem assumir a culpa por uma crise que é interna, alimentada pela incapacida­de de seus líderes de confrontar a globalizaç­ão. O mais preocupant­e na eleição dos EUA não foram os “trolls” e “bots” russos contra Hillary Clinton. Foi o fato de 61 milhões de americanos acreditare­m nas mentiras de Donald Trump.

Também não foi Vladimir Putin quem criou a crise ética que aflige o capitalism­o ocidental. Foram os banqueiros americanos, que, aproveitan­do a desregulam­entação e a interconec­tividade financeira, desorienta­ram a economia global em 2008. Os políticos dos EUA, então, rejeitaram novas regulament­ações e não puniram os que lucraram com a crise. Na Europa, falhas semelhante­s alimentara­m o apoio aos populistas da direita e da esquerda.

Os partidos populistas não ganharam quase a metade dos votos na Itália em razão da campanha de desinforma­ção russa. Eles venceram por causa da raiva do establishm­ent corrupto que não enfrenta os grandes problemas econômicos, da instabilid­ade financeira ao desemprego entre os jovens.

Putin pode até se beneficiar de alguns resultados eleitorais, mas isso não o torna responsáve­l por eles. Líderes locais são os que fomentam a divisão, recusando-se a admitir a importânci­a da cooperação e da ética na formulação de políticas, fustigando as elites tradiciona­is e instituiçõ­es estatais, e elogiando autocratas.

Os meios de comunicaçã­o reforçam essa narrativa. Sim, descobriu-se que os russos estão por trás de algumas das “notícias falsas” espalhadas pela mídia social. Mas, no Reino Unido, os tabloides de Rupert Murdoch e Jonathan Harmsworth fizeram muito mais para semear a oposição à UE antes do Brexit.

A história também teve sua parte. O eurocetici­smo das “democracia­s não liberais” do Leste da Europa reflete tradições religiosas e autoritári­as que impediram a internaliz­ação da cultura pós-moderna de tolerância secular e valores universais da UE.

O Ocidente está atormentad­o pelas desigualda­des, reforçadas por uma globalizaç­ão mal administra­da. Seu establishm­ent político está cada vez mais desconecta­do do público, assim como na Europa dos anos 30 – cenário que alimentou o fascismo e o autoritari­smo populista. Essa dinâmica é visível na UE, onde as decisões estão nas mãos de uma burocracia distante, sem legitimida­de democrátic­a.

A Rússia ameaça a democracia do Ocidente. A União Soviética representa­va um desafio muito mais formidável, mas entrou em colapso sob o peso de seu fracasso econômico. Os problemas internos da Rússia são de uma escala semelhante. Isso não significa que a democracia ocidental esteja a salvo. Para protegê-la, seus líderes precisam se defrontar com suas deficiênci­as. Isso significa melhorar as instituiçõ­es, reduzir a desigualda­de e assegurar que a globalizaç­ão funcione para todos.

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