O Estado de S. Paulo

Tradição egípcia

É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

- EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

OEgito, com 93 milhões de habitantes, terá um novo presidente escolhido pelo voto, entre ontem e amanhã. É um momento raro. Na verdade, muito raro mesmo. Por mais de 50 anos, os presidente­s eram nomeados. E sempre militares: Nasser, o inventor do Novo Egito, de 1954 a 1970, Anwar Sadat, de 1970 a 1981. E, mais tarde, Hosni Mubarak.

Nada disso agora. Haverá votação democrátic­a, mas o vencedor, provavelme­nte, será ainda um militar, até mesmo um marechal, Abdel Fatah al-Sissi, que chegou ao poder por um golpe de estado em 2013. As ruas do Cairo se beneficiam do retorno à democracia. Jovens desfilam com faixas glorifican­do o marechal. As ruas barulhenta­s ganharam mais decibéis graças à música desenfread­a.

Inicialmen­te, a campanha foi tranquiliz­adora. Diante do marechal Sissi, as candidatur­as se agrupavam. Contamos até seis. Infelizmen­te, os candidatos não iam muito adiante com suas ideias. Além disso, eles estavam sem sorte: Khaled Ali, especialis­ta em direitos humanos, e Ahmed Shafiq, ex-primeiromi­nistro, tiveram de responder a perguntas feitas pela Justiça. Outro militar, o coronel Ahmed Konsowa, anunciou que se apresentar­ia, mas foi condenado a 6 anos de prisão.

Em resumo, a tropa de candidatos foi dizimada antes mesmo de entrar em combate. Deve-se admitir que é um problema de impossível solução que o Egito tem de resolver: organizar uma eleição livre e justa, com candidatos (além de Sissi) que não conseguem nem chegar a tempo na linha de partida. Por sorte, no último momento, houve um que registrou sua candidatur­a. Melhor ainda: ela foi aceita, de modo que as eleições serão irrepreens­íveis e até exemplares, uma vez que haverá a presença de dois candidatos: o marechal e o senhor Moussa Mostafa Moussa.

Uma aprovação adicional: Moussa é bem conhecido porque era amigo de Sissi. Essa mudança de curso, na véspera da eleição, demonstra sua coragem e e virtude moral. Moussa, de 68 anos, é arquiteto e até tem um programa: o “capitalism­o nacional”. Ele tem ainda outra virtude, a habilidade dialética. “Quando vi que Sissi não tinha ninguém à sua frente, entendi que tinha de entrar na corrida. Foi meu dever patriótico participar, porque devemos jogar o jogo democrátic­o.”

Há uma dificuldad­e: se quisermos nos informar sobre Moussa, vamos nos deparar com o programa de Sissi e seus slogans. Não é preciso entrar em pânico. Moussa não teve tempo para “mudar” sua página do Facebook, mas ele o fará, tudo indica.

No entanto, e apesar do terrível Moussa, os especialis­tas acreditam que Sissi tem chances. Ele nasceu em uma família pobre, no Cairo. Seu pai tinha um quiosque no Bazar. Ele cresceu no distrito de Gamaliya, onde mesquitas e palácios dão testemunho da grandeza e beleza do Egito. Tendo abraçado a carreira militar, sua estreia foi discreta. Foi nomeado ministro da Defesa e chefe das Forças Armadas. E o que ele fez?

Em 2011, reconheceu que a polícia praticou testes de virgindade em garotas que haviam sido presas durante a revolução na Praça Tahrir. Ele explica: “Trata-se de proteger mulheres jovens de estupro e, ao mesmo tempo, proteger soldados da acusação de serem estuprador­es”.

Sissi tem outro feito. Em 2014, ele apresentou um aparato inventado por um médico militar que permite a cura da aids e da hepatite C, ao mesmo tempo. Cientistas políticos se perguntam como Sissi, com tal currículo e um nome de desenho animado, chegou à cúpula do Estado.

A resposta vem da história recente. A população ficou tão perturbada com a desordem da revolução que “ficou assustada” com qualquer “mudança”. Deve ser lembrado que Sissi substituiu Mohamed Morsi, primeiro presidente, desde Nasser, eleito e civil ao mesmo tempo. Além disso, ele era um irmão muçulmano, um trunfo nesse período de instabilid­ade.

Mas Morsi era de uma mediocrida­de incomum. Em poucos meses, ele arruinou as conquistas da revolução. Então, seria preciso nos livrar disso. Então, o povo egípcio disse: “Tudo é melhor do que um civil, até um militar”. E é Sissi quem substitui Morsi. O Egito se apega a sua tradição desde Nasser, entregando as chaves do país aos militares.

Será uma boa ideia? O lançamento do novo “rais”, em 2013, custou 3 mil mortos, 17 mil feridos e 1,9 milhão de prisioneir­os. Milhares de sites foram fechados. As liberdades , esmagadas. O terrorismo, desencadea­do. Em 2017, houve 800 atentados no país. A Península do Sinai é hoje o grande teatro do terror. Em 2017, na TV France 24, Sissi disse que não havia mais presos políticos no Egito. As ONGs não concordam e dizem que há mais de 60 mil.

O Egito se apega a sua tradição, entregando as chaves do país aos militares

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