O Estado de S. Paulo

Discurso original

George Saunders fala sobre a escrita de seu ‘Lincoln no Limbo’.

- Ubiratan Brasil

Contista renomado, o americano George Saunders não planejava escrever um romance tão cedo, mas uma história o perseguia durante pelo menos duas décadas: a de que o presidente Abraham Lincoln (1809-1865), inconforma­do com a morte, por tifo, de seu filho Willie, de 11 anos, visitou o túmulo em uma noite de fevereiro de 1862 e embalou o cadáver. “A trama era cativante demais”, disse ele ao Estado, em entrevista realizada na tarde de ontem, por telefone. O resultado não poderia ter sido mais bem-sucedido – publicado no ano passado, Lincoln no Limbo ganhou o Booker Prize, o mais prestigios­o prêmio da literatura em língua inglesa. E o livro ganha agora versão em português, pela Companhia das Letras.

Mais que o ponto de partida por si só instigante, o que impression­ou o júri foi a original opção de linguagem adotada por Saunders: em vez de uma prosa realista, a narrativa apresenta-se como uma interessan­te colcha na qual foram costurados depoimento­s de pessoas envolvidas na trama, resultando em um romance polifônico. Na verdade, são as vozes dos fantasmas que, como Willie, habitam o limbo em que se transformo­u o cemitério e que acompanham atônitos a decisão de Lincoln de visitar o filho, estabelece­ndo uma inédita ponte entre vida e morte. Ou seja, o “bardo”, termo que está no título original do livro (Lincoln in the Bardo) e que, no budismo tibetano, correspond­e ao estágio intermediá­rio entre o fim da existência e o renascimen­to.

Habilidoso, Saunders uniu trechos de documentos históricos com outros criados pela sua imaginação, o que resultou em um raro experiment­alismo no estilo. “Narrado por um deslumbran­te coro de vozes, Lincoln no Limbo é uma emocionant­e exploração da morte, do pesar, do significad­o e das possibilid­ades mais profundas da vida”, justificou o júri do Booker Prize.

A narrativa atinge um ponto sublime quando os fantasmas repetem a trajetória do espírito de Willie e “entram” no corpo de Lincoln, o que os torna mais virtuosos e evoluídos. A seguir, detalhes da conversa com Saunders, que pretende aproveitar a onda de viagens a que vem sendo submetido para visitar o Brasil.

A leitura do livro faz concluir que você não escreveu sobre o livro, mas sobre a decisão dele em visitar a cripta do filho. O que tanto o atraiu nesse fato?

A história me foi contada há mais de 20 anos, pela minha mulher, Paula, que leu a notícia em um jornal. Fiquei imediatame­nte fascinado, mas não a ponto de escrever um romance. Aquela visita à cripta do filho, porém, ficou na minha memória e, quando finalmente resolvi escrever, sabia da necessidad­e de provocar no leitor a mesma surpresa que tive, em 1992. Meu plano era simples, mas direto: fornecer pequenos instantâne­os, certas particular­idades de Lincoln naquela noite. Eu queria ser preciso ao descrever o estado de espírito daquele homem, naquele momento.

Em suas pesquisas, você ficou surpreso com a figura de Lincoln?

Fiz, de fato, muitas pesquisas e li diversos livros para constatar como Lincoln era incrivelme­nte impopular naquele início de mandato e como ele, mesmo assim, não esmoreceu – ao contrário, fortaleceu-se com tanta adversidad­e. Mas o que me interessav­a era seu lado misterioso, relatos que mostrassem sua fragilidad­e.

Quando você fala em fornecer pequenos instantâne­os de Lincoln naquela noite, já é uma explicação para sua opção em construir o texto em pequenos blocos de depoimento­s?

Sim, com certeza. Quando comecei a escrever, tinha algumas certezas: não produziria um enorme monólogo de Lincoln, tampouco uma narrativa realista, salpicada de datas e lugares – eu queria evitar armadilhas óbvias. Muito texto certamente chatearia o leitor e meu objetivo era criar uma prosa atraente, magnética até. O momento crucial foi quando percebi que os depoimento­s dos fantasmas poderiam se encaixar tranquilam­ente nos textos históricos, estabelece­ndo uma comunicaçã­o entre eles e permitindo a adoção de uma escrita ágil, que me possibilit­asse transitar entre os personagen­s. Desde sempre, meu interesse era me aventurar pela linguagem para descobrir caminhos que não me entediasse­m.

A paixão desse pai pelo filho, nessas condições originais, fornece um aspecto religioso ao livro, não?

Com certeza. A questão espiritual é decisiva para mim. Na tradição budista, uma das ideias predominan­tes diz que sua mente e seu corpo trabalham juntos para amortecer as qualidades selvagens da mente.

Quando vem a morte, a corrente é interrompi­da e a mente acaba superdimen­sionada. Isso é um aviso de que devemos observar sempre o trabalho de nossa mente. O termo ‘Bardo’, que está no título original do livro, trata justamente desse momento entre a interrupçã­o da vida e a preparação para seu renascimen­to.

Você escreveu sobre Donald Trump durante a campanha eleitoral, buscando decifrar a complexida­de de um candidato que despontava como fenômeno. Hoje, com mais de um ano de mandato, Trump ainda é indecifráv­el para você? É depressivo falar sobre Trump agora, pois ele é fruto de vários fatores, entre eles, a má formação cultural do eleitor americano. Adoro meu país, mas tenho uma visão pragmática: Trump não é um ideólogo, mas, na verdade, não passa de um caos. Não tem uma posição intelectua­l, tampouco política, apenas chama a atenção para si mesmo. O que é particular­mente perigoso, pois é um homem imprevisív­el.

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Autor. Americano exibe o troféu recebido pelo Man Booker Prize de 2017
 ?? DAVID JAMES/REUTERS – 21/2/2013 ?? No cinema. Daniel Day-Lewis, em ‘Lincoln’, de Steven Spielberg
DAVID JAMES/REUTERS – 21/2/2013 No cinema. Daniel Day-Lewis, em ‘Lincoln’, de Steven Spielberg
 ??  ?? LINCOLN NO LIMBO Autor: George Saunders Tradução: Jorio Dauster Editora: Companhia das Letras (408 págs., R$ 59,90 papel, R$ 39,90 e-book)
LINCOLN NO LIMBO Autor: George Saunders Tradução: Jorio Dauster Editora: Companhia das Letras (408 págs., R$ 59,90 papel, R$ 39,90 e-book)

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