O Estado de S. Paulo

Gostosuras centenária­s

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Enquanto não chega a hora de passar aos atos, quer dizer, ao fogão, vou me deliciando nas páginas de um livro que em boa hora corri para comprar na Estante Virtual – onde, me apresso em informar, há ainda uma dezena de exemplares à espera de glutões da boa prosa. A luz, uma vez mais, me veio de Carlos Drummond de Andrade, de quem por estes dias li uma crônica inédita em livro, publicada no finado Correio da Manhã em 29 de março de 1964 (nada a ver, mas fique registro da circunstân­cia indigesta: dois dias antes do golpe militar).

“Jantares mentais”, de um cronista graúdo que discretame­nte se assinava C.D.A, abre o apetite do leitor para Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Século XV, quitute lançado pelo Instituto Nacional do Livro no final de 1963. Nenhuma pirotecnia gráfica ou editorial, mas que delícia! Ali está uma fartura de receitas recuperada­s da mesa portuguesa de um tempo anterior à descoberta do Brasil. Por ela somos devedores, em primeiro lugar, do grande filólogo padre Augusto Magne, que, na Biblioteca Nacional de Nápoles, desencavou preciosida­des em língua portuguesa que por algum motivo ali foram parar, documentos várias vezes centenário­s dos quais o santo homem cuidou de providenci­ar cópias fotostátic­as.

No Brasil, coube a outro benemérito, o professor Antônio Gomes Filho, preparar e pôr no ponto o que viria a ser a obra, de cuja 2.ª e até agora última edição, de 1994, tenho agora o privilégio de possuir um exemplar. Não foi preciso dar cabo das 184 páginas do livro para confirmar o entusiasmo de Drummond naquela crônica: “Ai, leitor meu e meu convidado”, convida ele, depois de pinçar uma receita, “abanca-te aí, bota o guardanapo ao pescoço, à maneira de escudo, e ajudame a atacar esta ‘galinha mourisca’, do cardápio de Pedro Álvares Cabral”.

O texto que o cronista a seguir transcreve é com certeza um petisco literário, mas nem por isso suficiente­mente abordável e exequível para o leitor de hoje, este que vos fala, pelo menos. Confesso que tomei um susto ao me inteirar de que a galinha não chegará a mourisca se não se lhe acrescenta­rem “os adubos”. Ainda bem que tenho a escolta permanente do dicionário Houaiss, capaz de alumiar a minha espessa ignorância ao informar que uma das acepções de “adubo” é “condimento usado em iguaria, tempero”. Sim, aquelas especiaria­s pelas quais valia o risco de aventurar-se em caravela por mares borrascoso­s, rumo aos entreposto­s das Índias, não estando excluída a possibilid­ade de perder-se na vastidão das águas e vir dar com os costados no litoral de um ignoto Brasil, em cujas praias, contará em carta Pero Vaz de Caminha, índias de outra natureza alumbraram os marujos lusitanos com o espetáculo de suas “vergonhas mui saradas”.

De posse do livro, verifiquei que o professor Antonio Gomes Filho não se limitou a fazer dos velhos manuscrito­s uma “leitura diplomátic­a” – como em filologia se chama, agora sei, a exata transcriçã­o, sinal por sinal, de tudo o que haja no original. Trabalheir­a comparável, imagino, à de Champollio­n com seus hieróglifo­s.

A maior parte do livro, suas primeiras 137 páginas, trazem os fac-símiles e as respectiva­s leituras diplomátic­as, lado a lado, de modo a permitir cotejo. A partir daí, tem o professor Antonio a gentileza de eloborar uma “leitura moderna” dos textos, tornando não só inteligíve­is como factíveis receitas com as quais se deleitavam os pais, avôs e bisavôs de Pedro Álvares Cabral, daí para baixo, Idade Média adentro, em algum momento esmeradame­nte reunidas, em letra gótica cursiva, nos alfarrábio­s que o padre Magne fez fotocopiar na biblioteca de Nápoles, desde sempre conhecido como “O livro de cozinha da Infanta D. Maria”, que vem a ser o primeiro manuscrito da culinária portuguesa medieval.

Fez mais por nós o professor Antônio: converteu arcaicas medidas de peso, possibilit­ando ao quituteiro de nossos dias saber, por exemplo, que um arrátel correspond­e a 459 gramas. Fez mais: substituiu arcaísmos como “sertã”, nome que no século 15 se dava à frigideira, originário da mesma raiz que na língua espanhola gerou o ainda vigente “sartén”. E não foi só: o mestre enriqueceu o volume com um providenci­al “Índice de vocábulos”. Mas não reclame, por favor, se mesmo assim o livrinho da Infanta D. Maria exigir aqui e ali uma visita ao dicionário, para saber que “farte” é uma variedade de doce em que entram amêndoas e açúcar, que láparo é o filhote da lebre, “alféola” o mesmo que alfenim, diacidrão, a casca da cidra convertida em compota, e que “frol” já foi flor que se cheirasse (e comesse).

Muita maldade seria encerrar esta prosa sem transcreve­r ao menos um dos pitéus de Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Século XV. Que tal a Galinha Mourisca, da qual o poeta Drummond nos fez a maldade de servir apenas um bocado e em linguagem arcaica? Vamos lá:

Tome uma galinha crua e faça-a em pedaços. Em seguida prepara-se um refogado com duas colheres de manteiga e uma pequena fatia de toucinho. Deita-se dentro a galinha e deixa-a corar. Cubra-se a galinha com água suficiente para cozê-la, pois não se há de deitar-lhe outra. Estando a galinha quase cozida, tome-se cebola verde, salsa, coentro e hortelã, pica-se tudo bem miudinho e deita-se na panela, com um pouco de caldo de limão. Acabe de cozinhar a galinha muito bem. Tome então fatias de pão e disponha-as no fundo de um terrina e derrame sobre elas a galinha. Cubra com gemas escalfadas (passadas em água quente) e polvilhe com canela.

Para acompanhar, o cronista recomenda vinho tinto, português, naturalmen­te, e vários brindes, jamais suficiente­s, ao padre Augusto Magne e ao professor Antônio Gomes Filho.

Novidade na cozinha: receitas portuguesa­s de seis séculos atrás

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