O Estado de S. Paulo

O STF e uma confusão rural

- PEDRO DE CAMARGO NETO EX-PRESIDENTE DA SOCIEDADE RURAL BRASILEIRA

Casuísmos e incoerênci­as do Supremo Tribunal Federal (STF) não se verificam somente em casos de importânci­a histórica para a Nação, como na questão da prisão de condenados em segundo grau. Infelizmen­te, existem muitas outras ocorrência­s. No setor rural, um caso de menor relevância, embora gravíssimo para milhares de produtores rurais, trata da constituci­onalidade da cobrança da contribuiç­ão social do empregador rural pessoa física (Funrural).

Compreende­r a estrutura tributária e de contribuiç­ões sociais do Brasil não é tarefa fácil. Advogados e contadores quase sempre conseguem desenvolve­r interpreta­ções divergente­s, criando permanente­mente contencios­os nos tribunais administra­tivos e judiciais. A confusão existente é parte importante do chamado custo Brasil, grave empecilho para o maior desenvolvi­mento nacional. O Funrural é um grande exemplo dos absurdos brasileiro­s. Nunca teve interpreta­ção tranquila. A legislação mais antiga, a antiga e a atual atribui ao adquirente da produção de produtor rural que atue como pessoa física a responsabi­lidade pela dedução do valor devido pelo produtor e pelo recolhimen­to aos cofres públicos.

Em 2010, por decisão unânime, o STF julgou inconstitu­cional a contribuiç­ão por entender que a contribuiç­ão previdenci­ária havia sido instituída por lei ordinária, e não por lei complement­ar, como deveria ter sido. Embora essa decisão de 2010 fosse singular, aplicada unicamente ao processo julgado, acabou refletindo em percepção sobre a inconstitu­cionalidad­e do Funrural. Induziu milhares de adquirente­s e, na sequência, produtores a procurarem o Poder Judiciário, obtendo decisões liminares de primeira instância, posteriorm­ente mantidas em muitos Tribunais Regionais Federais. Em 2011, durante a tramitação de outra ação, novamente foi considerad­o inconstitu­cional.

A lentidão do Poder Judiciário, existente não apenas no STF, permitiu criar a confusão que ora enfrentamo­s. Passamos a ter adquirente­s de produção rural que descontava­m a contribuiç­ão dos produtores e recolhiam aos cofres públicos; adquirente­s que não descontava­m e não recolhiam, por serem detentores de medida do Poder Judiciário caracteriz­ando a contribuiç­ão como inconstitu­cional; e produtores que recorreram ao Poder Judiciário e instruíram adquirente­s a não descontar a contribuiç­ão, criando por longo período uma heterogene­idade entre iguais, que represento­u grave distorção.

Em abril de 2017 o plenário da Suprema Corte decidiu reexaminar a questão, introduzin­do o que entenderam como novos elementos, embora nem tão novos fossem, pois já existiam em 2010. Dessa vez decidiram pela constituci­onalidade do Funrural. Essa decisão alterou o entendimen­to até então existente, que vigorou por sete anos.

O passivo criado a adquirente­s e milhares de produtores rurais (*) pelo novo entendimen­to do STF e, mais do que isso, a inseguranç­a jurídica provocada por essa alteração jurisprude­ncial tornam esses produtores inviáveis. O julgamento dos embargos declaratór­ios dessa decisão do STF não foi ainda realizado. Sete anos é muito tempo, agora oito, para uma questão desse nível de gravidade permanecer em suspenso. Justiça lenta é falta de justiça.

Como explicar uma reversão de interpreta­ção dessa magnitude? A primeira, obtida por unanimidad­e na Suprema Corte; a mudança, em julgamento no qual, por maioria de 6 votos a 5, ficou entendido o inverso. Em sete anos ministros se aposentara­m e chegaram outros. Mesmo assim, houve ministros que mudaram sua interpreta­ção.

Compreende­r é praticamen­te impossível. A lei antiga deixou de transcreve­r incisos, somente o caput de um artigo da lei, que fixava as alíquotas na lei mais antiga. Como a lei foi declarada inconstitu­cional, esse artigo não existiria, tese reforçada por resolução Senado que estava esquecida, porém foi votada após a decisão de 2017. E a nova lei – que foi prorrogada, aprovada, sancionada e aguarda a votação no Legislativ­o de vetos do Executivo – já começa a ser contestada, existindo até decisões nos tribunais de Mato Grosso do Sul.

A Sociedade Rural Brasileira participa do processo no STF como amicus curiae desde 2015. Após a decisão de 2017 apresentou embargos solicitand­o a modulação dos efeitos da decisão, isto é, pleiteia que a nova interpreta­ção do STF seja válida para o futuro e que para o passado seja válida a interpreta­ção antiga.

Um significat­ivo valor deixou de ser recolhido aos cofres públicos. Responsabi­lidade de quem? Do adquirente de produto agropecuár­io que, induzido por decisão unânime do STF e amparado pelo Poder Judiciário, não recolheu, pois seria uma contribuiç­ão inconstitu­cional; no momento em que um adquirente deixou de descontar do produtor, criou pressão de mercado, levando seu concorrent­e a procurar a mesma condição. Do produtor rural que, com a percepção criada de que se tratava de contribuiç­ão ilegal, obteve medida do Poder Judiciário para o não pagamento. Do Poder Executivo, que assistiu à perda de arrecadaçã­o, porém aguardou calmamente o Poder Judiciário se pronunciar, sem procurar desenvolve­r junto ao Poder Legislativ­o uma interpreta­ção sem margem de dúvida nesse longo período. Do Poder Judiciário, que parece não ter pressa em atender às demandas por equidade e justiça da sociedade e quando o faz, após sete anos, decide inverter uma interpreta­ção anteriorme­nte unânime.

Após a decisão de março de 2017 no STF, o Poder Executivo encaminhou medida provisória com o ordenament­o da cobrança do passivo criado pelo não recolhimen­to. O Poder Legislativ­o atuou emendando a legislação, numa tramitação tumultuada. Datas prorrogada­s, inserção de novas questões, acordos não cumpridos e vetos ainda a serem votados no Legislativ­o. Desgaste político para todos. Um problema criado no Poder Judiciário somente lá consegue ser resolvido.

Como explicar que interpreta­ção unânime que vigorou por sete anos seja invertida?

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