O Estado de S. Paulo

A desocupaçã­o do Cambridge

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Se ainda havia alguma auréola de romantismo no relacionam­ento dos movimentos sociais com as instituiçõ­es de direito, sempre afrontadas acintosame­nte pelos primeiros sob a alegação de que as leis e os códigos consagram apenas os direitos da burguesia, ela foi esfumaçada pela iniciativa do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de bater nas portas do Tribunal de Justiça de São Paulo para pedir a reintegraç­ão de posse de um prédio invadido. E, se a pretensão for acolhida, a reintegraç­ão terá de ser realizada pela Polícia Militar – a mesma corporação que os movimentos sociais habitualme­nte acusam de violenta e opressiva.

O caso, que desnuda a retórica que muitos movimentos sociais sempre fizeram questão de chamar de “libertador­a” e “insurgente”, envolve o prédio do antigo Hotel Cambridge, que fechou as portas em 2002, resistiu algum tempo como espaço de festas e eventos e faliu em 2004, sem recolher IPTU. Com 15 andares e 241 quartos e localizado próximo do Vale do Anhangabaú, no centro da capital, ele foi invadido em novembro de 2012 pela Frente de Luta por Moradia (FLM), da qual o MSTC é um de seus braços. Como invasão é crime tipificado pelo Código Penal, na linguagem dos que participar­am desse episódio o imóvel foi “ocupado”, sob a justificat­iva de convertê-lo em moradia popular.

Além disso, como o Cambridge foi um hotel de luxo e, no período áureo, seu bar foi frequentad­o por empresário­s americanos e nobres europeus, entretidos por artistas famosos, a ocupação foi usada pelos invasores como espécie de vitrine para o que chamam de “luta pela moradia”. A ponto de invasores terem criado uma horta comunitári­a no telhado do prédio, líderes comunitári­os terem utilizado o imóvel como espaço de debates sobre direito de moradia, artistas terem promovido exposições alternativ­as e a invasão ter sido objeto de um filme que entrou em cartaz em 2017 e foi premiado no Festival de San Sebastián, um dos mais importante­s do mundo.

Desde 2004 a FLM vinha pressionan­do a Companhia Metropolit­ana de Habitação de São Paulo a classifica­r o imóvel como Habitação de Interesse Social (HIS). Entre 2010 e 2011, depois de várias ações de despejo e reintegraç­ão movidas sem sucesso pelos proprietár­ios do Hotel Cambridge, o prédio foi finalmente desapropri­ado pela Prefeitura. Mesmo assim, a FLM acabou invadindo o imóvel dois anos depois. Em 2015, após tê-lo recebido da Prefeitura a título de doação, a FLM apresentou um projeto para o programa Minha Casa, Minha Vida Entidades, solicitand­o financiame­nto da Caixa Econômica Federal para convertê-lo em 121 unidades habitacio- nais. Essa versão do programa foi criada para permitir que cooperativ­as e associaçõe­s sem fins lucrativos – inclusive as ligadas a movimentos sociais – definam livremente, com base em seus critérios, quem será agraciado com uma moradia.

O problema é que, pelo projeto da FLM para o prédio do antigo Hotel Cambridge, nem todas as famílias que passaram a residir no local, após a invasão, poderão ser atendidas. E como a reforma das instalaçõe­s exige que todos os invasores o desocupass­em até o dia 28 de março, data-limite fixada pelo governo federal para financiar o projeto, 14 moradores que não foram selecionad­os pelo movimento para receber uma unidade habitacion­al se recusaram a sair, alegando que não têm condições de voltar a pagar aluguel.

Foi por isso que, relegando para segundo plano o desprezo que sempre manifestar­am pelas instituiçõ­es “burguesas” de direito e agindo à imagem e semelhança dos donos de uma propriedad­e privada invadida, os coordenado­res da FLM e da entidade a ela vinculada, o MSTC, não hesitaram em entrar no Poder Judiciário com pedido de reintegraç­ão de posse do prédio, para não prejudicar os trâmites com Brasília. O apreço e o desprezo pelo Estado de Direito, determinad­o por suas conveniênc­ias políticas e materiais, dão a medida da hipocrisia desses movimentos sociais.

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