Mais que narrativa, é imersão na vivência do passado colonial
Lucrecia Martel é um caso à parte. Não apenas no interior da cinematografia latino-americana em seu todo, mas na do seu próprio país, a Argentina. Estamos acostumados a ver nos cineastas argentinos essa habi-
lidade em construir retratos verossímeis da classe média. Diálogos esculpidos com inteligência, certo distanciamento irônico dos personagens, uma carpintaria cinematográfica precisa.
Lucrecia não se enquadra nessas definições benignas. Pelo contrário. Sua filmografia compacta – está apenas em seu quarto longa – contribui para colocar em crise esse “cinema de qualidade”, bastante invejado no Brasil e também em outros países americanos.
Lucrecia trabalha não com a narrativa tradicional, mas com formas de, digamos “não narrativas”, fazendo com que alguns trechos de suas histórias pareçam singularmente abstratos. Esses traços estão presentes em O Pântano, A Menina Santa e A Mulher Sem Cabeça, seus longas anteriores.
Intensificam-se em Zama, sua primeira adaptação de obra alheia, o romance de mesmo nome do escritor Antonio Di Benedetto (1922-1986).
Lucrecia procura captar o que seria, talvez, a essência da obra de Di Benedetto, tão adequada para a realidade latino-americana, a narrativa “de espera”. Ou seja, o que de mais importante existe na história é exatamente aquilo que não acontece, o que um personagem almeja e não alcança. Aquilo por quem o protagonista gasta uma vida inútil como um fósforo queimado.
É exatamente o que se passa com Zama (vivido pelo ator mexicano Daniel Giménez Cacho). Alto funcionário perdido numa província sul-americana, ele aspira à transferência para a corte espanhola, onde vivem sua mulher e filhos. É o único ou pelo menos o maior propósito em sua vida.
A maneira como filma Lucrecia, seu trabalho com sons, imagens e diálogos entrecortados, torna sufocante essa espera. Há o clima doentio da colônia (estamos no século 17), o desconforto, a sujeira, o calor, a ausência de expectativas, o desejo mesclado ao desalento, sensações que se transferem para o imaginário do público.
Esse cinema precisa de cumplicidade para ser fruído. Não trata apenas de uma história mal ou bem contada. Mais que isso, é experiência sensorial de um mundo que ainda não é o nosso, mas está na origem do que seria o nosso presente, e talvez o nosso futuro. Imersão em nossa realidade colonial, nessa proto-história de países incompletos e, vale dizer, um tanto abstratos, como a narrativa.