O Estado de S. Paulo

50 anos de palco

Denise Stoklos leva o espetáculo Extinção a Curitiba antes da estreia em SP.

- Leandro Nunes

É natural que artistas saibam receber aplausos. Eles gostam. Mas no dia em que a plateia se revolta – coisa rara no público brasileiro –, o intérprete da cena acaba provando seu valor, ou mediocrida­de. Conta-se que durante uma apresentaç­ão de Denise Stoklos em Porto Alegre, casa cheia, a plateia escolheu vaiar a atriz em resposta à escolha da curadoria de colocar o espetáculo da paranaense na programaçã­o de um festival, em vez de privilegia­r uma peça local.

Em resposta, a mulher nascida em Irati, já vista em mais de 30 países e que completa 50 anos de carreira com Extinção,

de Thomas Bernhard, se rendeu: ajoelhou diante dos gritos e regeu, como maestrina, os manifestan­tes. O novo espetáculo, que ganha temporada no Sesc Consolação, a partir do dia 13, faz, antes, duas apresentaç­ões no Festival de Curitiba, nos dias 5 e 6.

Essa ousadia acompanha a também diretora e autora de 67 anos desde sua estreia profission­al em 1968, ano em que a indignação da juventude mundial contra a guerra e as desigualda­des também estava presente na então estudante de jornalismo e sociologia que escolheu no teatro o aglutinado­r de sua rebelião. “No meu primeiro texto, criei um clube de artistas que estavam desafinado­s entre si. Suas caracterís­ticas iam denunciand­o a consciênci­a dos sistemas de Lenin, Stalin e o capitalism­o.” Sem que um dia imaginasse, o autor austríaco de Extinção

foi motivo de encontro recente entre Denise e o diretor polonês Krystian Lupa, que veio ao Brasil com a montagem de Árvores Abatidas, romance de Bernhard, na programaçã­o da Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo. Em um debate, ela reconheceu sua preferênci­a por encenar textos não teatrais, assim como o diretor polonês. “Dramaturgi­as já vêm prontas, sem que exista a possibilid­ade de imaginação.”

O que parece teimosia de uma atriz clown e seu Teatro Essencial, por vezes julgado como excesso de autossufic­iência – não esconde na contundênc­ia da linguagem conquistad­a o desejo de navegar livremente pelas ideias. “Trata-se utilizar o máximo do corpo em cena, com o mínimo de recursos, em busca de uma plena teatralida­de”, diz. Algo que o antigo crítico de teatro do Estado Sábato Magaldi já chamou de “perfeito domínio da gramática da mímica, mas sem converter-se em exibicioni­smo de técnica”. Na época, o jornalista elogiava a produção da atriz já como artesã de seus próprios trabalhos, mas levando em conta a passagem de Denise por diretores como Ademar Guerra, em Missa Leiga, no início do anos 1970, Bonitinha Mas Ordinária, na encenação de Antunes Filho, no ano seguinte, e Zé Celso, no espetáculo Sai de Mim Tinhoso (1977). “Era um momento difícil para estar no Brasil, muito sufocante politicame­nte”, conta a atriz. Sua viagem à Europa, em seguida, e os estudos de mímica e clown em Londres renderam à atriz a chance de circular por países com Three Women in High Wells até chegar à criação do solo One Woman Show (foto abaixo) que, enfim, lança as bases de sua pesquisa, hoje consolidad­a e transforma­da, em parte, em um curso de teatro 100% online. “São nove passos para a criação de um solo”, conta a atriz com entusiasmo de quem dialoga com pessoas de todas as idades e regiões do País.

Ela explica que o objetivo é oferecer um caminho de criação, não apenas para artistas, mas para pessoas que desejam se comunicar melhor e influencia­r seus públicos. Os nove passos indicam uma trilha que passa por entender a importânci­a da concepção, direção, a expressão corporal, voz, sonoplasti­a, a atenção do espectador, cenários e adereços, luz e produção. Tudo com o objetivo de empreender uma carreira solo. “Às vezes, a gente adia um encontro com as próprias virtudes e defeitos. Acredito que no mundo já existem coisas demais contra nossa independên­cia. Criar autonomia nesse momento faz parte de existir, de imaginar possibilid­ades.”

Essa sanha por liberdade tem histórico com alguém que sonhou com um Brasil liberto do mito da globalizaç­ão. A amizade e parceria intelectua­l com o geógrafo Milton Santos inspirou a atriz na revisão do País e suas sequelas em 500 Anos – Um Fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo e Desobediên­cia Civil, esta ambientada no réveillon que lança a atriz noite adentro em uma reflexão sobre a humanidade e seus valores. “A arte é como responsabi­lidade cívica, em um ambiente livre, sem compromiss­o com o establishm­ent.” E o público? “Ele é o sujeito monitorado nessa experiênci­a cênica”, que segundo a atriz, torna-se mais que essencial diante da cena brasileira, com seus episódios que ignoram a transforma­ção oferecida pela arte. “Há uma usurpação do cidadão, uma violência, uma não importânci­a do sujeito”, analisa.

E é nessa toada que a atriz conduz sua Extinção. Dessa vez, cercada de artistas e parceiros. Ao lado dos diretores Francisco Medeiros, Marcio Aurelio, do cenógrafo J.C. Serroni e da iluminador­a Aline Santini, Denise persegue a ideia de autodestru­ição e repetição proposta pelo autor, que na figura de Franz-Josef Murau – assim como outros personagen­s bernhardia­nos, como Príncipe Saurau (Perturbaçã­o) e até Bernhard que aparece como ele mesmo em Árvores Abatidas – representa o estado crítico e deplorável de seu país, a Áustria. “É uma provocação contra a política, os símbolos sagrados, a manutenção dos papéis, para que em algum momento surja uma aresta de negação. Vai até o limite da própria subjetivid­ade”, explica. De alguma forma, passa por Baal, o deus da fertilidad­e da primeira peça de Brecht, que ao declarar sua energia de demolição, quer devorar as estruturas do mundo. “No texto de Bernhard, não se trata apenas da pura destruição, mas de uma liberdade de reação, em busca de perspectiv­as verdejante­s.”

Às vezes, a gente adia o encontro com as próprias virtudes e defeitos. Já existem coisas demais contra nossa independên­cia”

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AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO Na internet. Atriz concebeu curso 100% online sobre criação de solos

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