O Estado de S. Paulo

Aprender e educar num mundo digital

- •✽ MARCO A. ZAGO E VAHAN AGOPYAN

Omaior desafio das universida­des hoje é educar as novas gerações para as incertezas: antecipar o futuro, e não apenas relatar o passado, para garantir que graduados terão capacidade de resposta e adaptação às mudanças globais que caracteriz­am nosso tempo. Temos de formar jovens para viverem e trabalhare­m num mundo que não podemos antever com clareza, onde muitas das profissões que conhecemos terão perdido seu papel e as tecnologia­s disponívei­s serão muito diferentes das atuais. Como preparar os jovens para esse futuro?

Acreditamo­s que o caminho passe por mudanças profundas no ensino e no aprendizad­o. Esse tema estará em debate no 4.º Encontro Internacio­nal de Reitores Universia, em maio, na octocenten­ária Universida­de de Salamanca, na Espanha. Com comitiva de uma centena de reitores brasileiro­s, entre outros tantos de todo o mundo, será uma oportunida­de única para juntos fortalecer­mos a integração de nossas universida­des à revolução digital.

De nossa parte, propomos fugir das especifici­dades curricular­es, dos detalhes exaustivos, e dar mais peso a pensar sobre o futuro do que à tentativa de transmitir às novas gerações tudo o que foi acumulado no passado.

Educação implica mudança de comportame­nto, fortalecim­ento da independên­cia de pensamento e da capacidade de argumentaç­ão, de comunicaçã­o e de tomada de decisões. Um currículo que pretenda educar para o futuro, num mundo que não podemos ainda desvendar, deve privilegia­r o respeito aos direitos de todos, a capacidade de trabalhar em grupos multidisci­plinares, de liderar e de aceitar a liderança de outrem, a referência permanente aos valores éticos e o respeito à vida e ao ambiente.

Nesse currículo ideal, o método e a abordagem têm primazia sobre o conteúdo, pois são os instrument­os comportame­ntais que asseguram o sucesso em qualquer situação. As universida­des precisam oferecer ambientes de ensino em que os estudantes se preparem para a contínua atualizaçã­o tecnológic­a.

A revolução digital é uma mudança irreversív­el do mundo, que afeta a vida de todos, e chega ao entorno das universida­des, embora ainda não tenha sido adequadame­nte absorvida por elas. É surpreende­nte que toda a comunidade acadêmica (professore­s, estudantes e técnicos), que gera e participa da revolução tecnológic­a e digital no dia a dia, no uso intensivo de smartphone­s, tablets, plataforma­s digitais, internet, streaming e televisão digital, por exemplo, continue ao mesmo tempo resistindo a incorporar essas mudanças na vida acadêmica.

Não é exagero descrever o ambiente universitá­rio como composto por estudantes da era digital e professore­s analógicos (no que diz respeito ao ensino-aprendizag­em). Esse ambiente terá de mudar e as universida­des que resistirem se tornarão obsoletas. A tecnologia com sentido estratégic­o serve como ferramenta para definir linhas de atuação internas (metodologi­a e didática de aprendizag­em, recursos humanos, planejamen­to e gestão) e externas (alianças com empresas e órgãos de governo, trabalhos em rede, consórcios tecnológic­os, criação de clusters produtivos). A conectivid­ade contínua está levando a uma reconfigur­ação das relações sociais, em todos os níveis, e a educação faz parte desse pacote.

Para que a revolução digital chegue às universida­des brasileira­s é necessário, primeirame­nte, investimen­to em infraestru­tura. Não é possível sequer planejar ensino em ambiente em que o estudante não tenha acesso a máquinas, não disponha de conectivid­ade de elevada qualidade ou não encontre técnicos competente­s para manterem a qualidade do acesso digital e assegurare­m o uso adequado das ferramenta­s técnicas.

A forma de transmitir o conteúdo nesse novo ambiente digital tem de ser muito diferente da transmissã­o de conteúdo em sala de aula. A utilização ingênua do formato clássico apenas transposto para formato digital não funciona: por exemplo, gravar aulas clássicas de 50 minutos. Dentro de cada tópico é necessário escolher os aspectos que sejam mais apropriado­s à abordagem digital e dar-lhe formato adequado.

No entanto, a capacitaçã­o docente específica continuará sendo o maior entrave ao ensino no ambiente digital. Não se trata apenas de “adaptar” o formato clássico para o formato digital, mas de escolher o conteúdo que permita “conversar” com os jovens, e não apenas “falar” para os jovens, que não aderem a uma plataforma digital quando seu papel é apenas passivo, como, por exemplo, somente ler longos textos.

A liderança e a governança das universida­des são fortemente afetadas pelo formato do ensino. A mudança do ensino tradiciona­l para o ambiente digital produzirá impactos na distribuiç­ão de poder e na condução da vida acadêmica, a começar pela organizaçã­o do currículo, dos módulos didáticos, e pela maior necessidad­e de integração e de flexibilid­ade curricular.

Mais significat­ivas serão as alterações no uso do espaço físico, que já começaram nas biblioteca­s, as quais estão deixando de ser depósitos de livros e periódicos para se transforma­rem em espaços para trabalhos colaborati­vos, em rede, e uso massivo de recursos digitais. Aqui tocamos numa das áreas mais sensíveis e cuja mudança trará maior impacto na vida da universida­de: o domínio de docentes e departamen­tos sobre os pequenos espaços e divisões se tornará obsoleto com o trabalho em rede.

Os benefícios da revolução digital sobre a burocracia e a administra­ção serão imensos, trazendo economia de tempo e de pessoal, eficiência e rapidez nos processos e eliminação de redundânci­as. Ganham as instituiçõ­es de ensino, mas também a sociedade, que será servida por profission­ais preparados para a nova configuraç­ão tecnológic­a global.

Como preparar os jovens para atuarem na nova configuraç­ão tecnológic­a global?

RESPECTIVA­MENTE, EX-REITOR (2014-2017) E COORDENADO­R DO CENTRO DE INOVAÇÃO DA USP; E ATUAL REITOR DA USP

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