O Estado de S. Paulo

Tensões latentes

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Aescalada das tensões entre a Rússia e o Ocidente atingiu novo e preocupant­e patamar após Estados Unidos, Canadá, Austrália e outros 20 países aliados na Europa ordenarem a expulsão de 116 diplomatas russos, 60 deles baseados nos EUA, 12 dos quais em serviço na Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU), com sede em Nova York. Grande parte dos diplomatas expulsos atuava em missões de inteligênc­ia.

A ampla e coordenada ofensiva diplomátic­a da chamada comunidade internacio­nal é uma enfática vitória política da primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May. Há duas semanas, o governo britânico já havia ordenado a expulsão de 23 diplomatas russos em retaliação ao atentado com uso de Novichok – uma arma química que afeta o sistema nervoso central e pode levar à morte –, perpetrado no início do mês contra o ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha, Yulia, em Salisbury, interior da Inglaterra. Ambos estão internados e correm risco de morte. Em resposta a Londres, o governo russo também ordenou a saída de 23 diplomatas britânicos em serviço na Rússia.

O governo do Reino Unido classifico­u como “altamente provável” a participaç­ão do governo russo no atentado. As tensões entre os dois países são latentes desde 2006, quando Alexander Litvinenko, um ex-agente da KGB, antiga agência de espionagem russa, foi envenenado em Londres com polônio, uma substância radioativa. De acordo com as autoridade­s britânicas, a morte de Litvinenko foi determinad­a pelo Kremlin.

Agora, está-se diante da mais séria crise entre o regime do presidente Vladimir Putin e o Ocidente desde a anexação da Crimeia pelo governo de Moscou, em março de 2014.

A expulsão dos diplomatas russos ordenada pelo presidente Donald Trump supera os 55 diplomatas que foram obrigados a deixar Washington em 1986, durante a guerra fria. Até agora, esta era considerad­a a mais ampla medida diplomátic­a adotada pelos EUA contra a Rússia.

No âmbito doméstico, a expulsão dos diplomatas russos deverá fortalecer ainda mais o presidente Vladimir Putin. No dia 18 de março, ele foi reeleito com 76,7% dos votos, vitória recorde desde o fim da União Soviética, em 1991. Sua força perante o eleitorado reside na imagem que Putin transmite aos russos de ser um grande defensor de seu país contra as hostilidad­es do Ocidente.

Para a esmagadora maioria dos russos, Vladimir Putin, ele mesmo um ex-agente da KGB, é o único líder patriota e forte o bastante para fazer da Rússia um país ao mesmo tempo temido e respeitado, não só pela comunidade internacio­nal, mas também pelos seus. Para esta parcela do eleitorado, a eliminação de agentes duplos no exterior é vista como um recado para qualquer um que ousar trair a pátria.

O governo russo nega qualquer tipo de participaç­ão nos ataques a ex-espiões no exterior. Assim tem sido. “A Rússia sempre se esconde atrás da negação plausível, mas isso terá menos credibilid­ade agora”, disse William Pomeranz, especialis­ta em Rússia do Wilson Center, em Washington.

Dois dados importante­s merecem consideraç­ão neste imbróglio diplomátic­o. O primeiro é a solidaried­ade inequívoca dos EUA ao Reino Unido, mesmo diante da negativa oficial do governo russo quanto à suposta participaç­ão no atentado contra Sergei Skripal e sua filha. É notória a simpatia mútua entre Donald Trump e Vladimir Putin, e o atual movimento do presidente americano deixa margem para especulaçõ­es quanto ao futuro das relações entre os dois países, já abaladas diante da suspeita da participaç­ão russa no resultado da última eleição presidenci­al nos EUA. “A expulsão dos diplomatas tornará mais difícil um encontro entre Trump e Putin”, completou Pomeranz.

Além disso, a crise com os russos vem no momento em que o Reino Unido e a União Europeia estão com relações abaladas por conta do Brexit. O respaldo europeu às ações de Theresa May mostra que o velho continente pode se unir quando ameaças externas sobrepujam divisões internas.

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