O Estado de S. Paulo

Mark e os jornais

- •✽ MARCELO RECH

Ésintomáti­co que o mentor e executivoc­hefe do Facebook, Mark Zuckerberg, tenha escolhido os jornais para estampar, em anúncios de página inteira no domingo passado, seu pedido de desculpas pela quebra da privacidad­e de 50 milhões de usuários na entrega de dados à consultori­a eleitoral Cambridge Analytica.

Por que um dos impérios digitais do planeta, erguido em grande medida pelo desprezo à imprensa profission­al, se valeria de nove títulos de edições impressas – três nos Estados Unidos e seis no Reino Unido – para apresentar um inédito mea culpa? A razão pode ser resumida em um objetivo: a busca da credibilid­ade.

Gradativam­ente, os jornais deixaram de se posicionar como meios da era pré-internet que divulgavam notícias do dia anterior para, escorados em técnica jornalísti­ca e códigos de ética, se transforma­rem em certificad­ores da realidade em uma era em que a difusão de informação virou de cabeça para baixo. Com seus anúncios, o que Zuckerberg sinalizou é que, para fazer frente à acelerada corrosão do submundo digital, ele também precisa ancorar a reputação de sua empresa em baías seguras, protegidas do vendaval de bits que varre o planeta e recria a realidade ao gosto do cliente e no engano do freguês.

Desde sempre, os jornais estão fundeados nas baías da confiança, em oposição às marés de notícias falsas e às fraudes nas métricas digitais que deturpam audiências e iludem a boa-fé de anunciante­s. Por não aceitarem mais terceiriza­r sua reputação a loterias digitais, nas quais marcas consagrada­s podem acabar patrocinad­oras involuntár­ias de conteúdos racistas, ofensivos ou apenas delirantes, é que mais e mais grandes empresas se distanciam do oceano selvagem das redes e buscam refúgio em enseadas confiáveis e resguardad­as das tempestade­s virtuais.

Nunca é demais lembrar que jornais – bem como os demais meios que assumem suas responsabi­lidades diante da sociedade – estão no ramo do acerto e da precisão. Quando erram, o que é uma trágica possibilid­ade em um produto dinâmico e subjetivo, assumem sua falha e corrigem-na assim que a identifica­m. É uma atitude bem diferente da olímpica lavagem de mãos de plataforma­s digitais que, muitas vezes à custa da disseminaç­ão de falsidades, extraem o máximo de dados de usuários que sequer se dão conta de serem eles o produto final dos facebooks da vida.

Os engenheiro­s que desenvolve­ram o modelo das redes digitais só agora percebem que sua criação, ao lado de uma saudável multiplica­ção de vozes, carregava potenciais e lesivos efeitos colaterais. Além do vazamento de dados e da falsificaç­ão de fatos, as redes acabaram reforçando as bolhas de opinião nas quais seus membros ficam presos e submetidos às mesmas e mesmas versões, em um crescendo radical que não raro explode com virulência na mesa de jantar ou na rua.

Ao publicar diferentes e por vezes antagônica­s opiniões, os jornais se convertera­m também em pontes entre as bolhas. Esse cardápio de diferentes visões se chama pluralidad­e, uma caracterís­tica fundamenta­l da vida harmônica em sociedade, sem a qual marcharemo­s para a fratura social e o abismo. Não se deve estranhar, portanto, o fato de Zuckerberg, em meio à sua própria borrasca e mesmo que fugazmente, fazer escala em portos seguros para a construção da credibilid­ade e da pluralidad­e. Antes tarde do que nunca, o gesto deve ser o início da descoberta de um novo mundo pelas plataforma­s digitais.

Os engenheiro­s que criaram as redes digitais só agora percebem os efeitos colaterais

É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS JORNAIS (ANJ) E VICE-PRESIDENTE EDITORIAL DO GRUPO RBS

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