Coerência poética
Companhia de dança de Sandro Borelli celebra 20 anos
Quando uma cia de dança completa 20 anos, nas condições instáveis que a arte enfrenta no País, já é preciso comemorar. Quando se trata de uma cia que marca a cena da dança, de modo a se tornar parte constitutiva dos seus trilhos, é preciso, para além de comemorar, refletir sobre o que a distingue. É o caso da Cia Carne Agonizante, criada e dirigida por Sandro Borelli, que começa a celebrar duas décadas de persistência e coerência com a estreia de Não Tive Tempo para Ter Medo, em cartaz até 8 de abril, no Kasulo Espaço de Arte e Cultura.
A coreografia é inspirada na trajetória de Carlos Marighella (1911-1969). Ao pensar no guerrilheiro traduzido nas artes, somos transportados aos inúmeros grafites em vias urbanas ou às peças de teatro, a Um Comunista, de Caetano, ou ao emblemático Salve, Carlos Marighella, de Mano Brown, no início da música Mil Faces de Um Homem Leal. Em dança, quem, se não Sandro Borelli, poderia convocar o controverso personagem da história recente do Brasil para a sua cena?
O compromisso em falar do presente, e de um presente socialmente engajado, marca a trajetória da cia, que faz, desse novo trabalho, mais um da série que Borelli vem produzindo com discurso político explícito. Só nos últimos 10 anos, poderíamos citar Um Artista da Fome (2008), Estado Independente (2009), Produto Perecível Laico (2011) e Colônia Penal (2013).
A dramaturgia de Não Tive Tempo para Ter Medo discute o que seria um corpo que resiste e um que ataca. Marighella, ali, é o corpo da resistência, que, com movimentos reincidentes, tenta manter-se em pé e continuar a agir, deslocar. A agonia e o esforço não são amenizados, ao contrário, são vivenciados exaustivamente. Exaustão é uma das chaves da angústia compartilhada entre espectador e bailarinos.
Clara Sharf, companheira do militante, que é negligenciada pela maioria dos relatos sobre Marighella, é trazida para a cena. Não em um registro de “amor romântico”, os dois corpos friccionam,
em uma movimentação de dubiedade entre suportar (dar suporte) e violentar (com o próprio peso que se desmonta sobre o outro).
O engajamento do elenco, formado por Alex Merino, Mainá Santana e Rafael Carrion, é notável e sustenta a consistência artística. Os tempos, as forças necessárias, os ajustes precisos são tecidos, fazendo com que o trabalho não caia na armadilha de uma representação simplista de fatos históricos. Marighella se faz nos músculos e articulações de um discurso construído em dança, na complexidade das transições coreográficas.
Uma camisa ensanguentada, à
beira do palco, faz o ambiente cheirar a sangue. Não é possível saber se realmente é sangue, ou se é a costura dramatúrgica que produz o cheiro. Seja qual for a resposta, o odor se faz presente, tanto quanto os cheiros de O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Uma força poética dessas raras.
Não Tive Tempo para Ter Medo é um brinde à trajetória de Sandro Borelli, que desde 1995 segue produzindo dança sem titubear diante dos contextos mais alarmantes. Atualmente, Sandro é presidente da Cooperativa Paulista de Dança e um dos principais representantes da área nas discussões de políticas públicas culturais.