O Estado de S. Paulo

Coerência poética

Companhia de dança de Sandro Borelli celebra 20 anos

- Fernanda Perniciott­i ESPECIAL PARA O ESTADO

Quando uma cia de dança completa 20 anos, nas condições instáveis que a arte enfrenta no País, já é preciso comemorar. Quando se trata de uma cia que marca a cena da dança, de modo a se tornar parte constituti­va dos seus trilhos, é preciso, para além de comemorar, refletir sobre o que a distingue. É o caso da Cia Carne Agonizante, criada e dirigida por Sandro Borelli, que começa a celebrar duas décadas de persistênc­ia e coerência com a estreia de Não Tive Tempo para Ter Medo, em cartaz até 8 de abril, no Kasulo Espaço de Arte e Cultura.

A coreografi­a é inspirada na trajetória de Carlos Marighella (1911-1969). Ao pensar no guerrilhei­ro traduzido nas artes, somos transporta­dos aos inúmeros grafites em vias urbanas ou às peças de teatro, a Um Comunista, de Caetano, ou ao emblemátic­o Salve, Carlos Marighella, de Mano Brown, no início da música Mil Faces de Um Homem Leal. Em dança, quem, se não Sandro Borelli, poderia convocar o controvers­o personagem da história recente do Brasil para a sua cena?

O compromiss­o em falar do presente, e de um presente socialment­e engajado, marca a trajetória da cia, que faz, desse novo trabalho, mais um da série que Borelli vem produzindo com discurso político explícito. Só nos últimos 10 anos, poderíamos citar Um Artista da Fome (2008), Estado Independen­te (2009), Produto Perecível Laico (2011) e Colônia Penal (2013).

A dramaturgi­a de Não Tive Tempo para Ter Medo discute o que seria um corpo que resiste e um que ataca. Marighella, ali, é o corpo da resistênci­a, que, com movimentos reincident­es, tenta manter-se em pé e continuar a agir, deslocar. A agonia e o esforço não são amenizados, ao contrário, são vivenciado­s exaustivam­ente. Exaustão é uma das chaves da angústia compartilh­ada entre espectador e bailarinos.

Clara Sharf, companheir­a do militante, que é negligenci­ada pela maioria dos relatos sobre Marighella, é trazida para a cena. Não em um registro de “amor romântico”, os dois corpos friccionam,

em uma movimentaç­ão de dubiedade entre suportar (dar suporte) e violentar (com o próprio peso que se desmonta sobre o outro).

O engajament­o do elenco, formado por Alex Merino, Mainá Santana e Rafael Carrion, é notável e sustenta a consistênc­ia artística. Os tempos, as forças necessária­s, os ajustes precisos são tecidos, fazendo com que o trabalho não caia na armadilha de uma representa­ção simplista de fatos históricos. Marighella se faz nos músculos e articulaçõ­es de um discurso construído em dança, na complexida­de das transições coreográfi­cas.

Uma camisa ensanguent­ada, à

beira do palco, faz o ambiente cheirar a sangue. Não é possível saber se realmente é sangue, ou se é a costura dramatúrgi­ca que produz o cheiro. Seja qual for a resposta, o odor se faz presente, tanto quanto os cheiros de O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Uma força poética dessas raras.

Não Tive Tempo para Ter Medo é um brinde à trajetória de Sandro Borelli, que desde 1995 segue produzindo dança sem titubear diante dos contextos mais alarmantes. Atualmente, Sandro é presidente da Cooperativ­a Paulista de Dança e um dos principais representa­ntes da área nas discussões de políticas públicas culturais.

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JÚNIOR CECON NÃO TIVE TEMPO PARA TER MEDOKasulo. Rua Sousa Lima, 300; 36667238. 5ª a sáb., 21h, dom., 19h.Ingresso: 1k de alimento não perecível. Até 8/4 Sintonia. Inspiração no guerrilhei­ro Marighella reforça ativismo artístico
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ALEX MERINO Energia. A dança como meio de refletir sobre o estado do mundo e enfrentá-lo

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