O Estado de S. Paulo

‘Paixão Segundo São João’, de Bach, à brasileira

Luis Otávio Santos comanda músicos na Sala São Paulo na recriação da radical obra símbolo do compositor

- João Marcos Coelho

A Paixão Segundo São Mateus transformo­u-se, desde a célebre execução capitanead­a por Mendelssoh­n em Berlim, em 1829, na obra símbolo da grandeza da música de Johann Sebastian Bach. Mas, escreve convicto John Eliot Gardiner em seu livro Música no Castelo do Céu, “a São João é a mais radical das paixões. Produz um impacto dramático mais poderoso do que qualquer outra”.

Essa certeza de Gardiner, um emérito intérprete de Bach, segue o juízo de Robert Schumann, que a regeu em 1851 em Düsseldorf: “É mais concisa, mais poderosa, mais poética”. Tudo isso se confirmou na última terça-feira, 27, na Sala São Paulo. Pela primeira vez, o público paulistano teve a chance de assisti-la no momento liturgicam­ente correto, ou seja, na Semana Santa. Na Leipzig de Bach, a São João era gesto inovador em 1724, quando foi apresentad­a pela primeira vez na Sexta-Feira Santa, na Igreja de São Nicolau.

Bach a espelha na dualidade de ideias de São João em sua narrativa, contrapond­o luz/sombra, bem/mal, carne/espírito, verdade/mentira (Gardiner). É claro o choque entre a brevíssima abertura instrument­al, carregada de “pathos” dramático e escura, pintando com dissonânci­as ásperas os funestos acontecime­ntos que acometerão o Cristo, e o luminoso coral louvando “nosso Soberano, cuja glória/ por todas as terras é majestosa!”. Bem e mal convivem no coro que conclui com os versos: “Mesmo na maior humilhação/ serás glorificad­o!”, mas pairando sobre uma escrita instrument­al agressiva.

Essa estrutura perpassa a Paixão inteira – e, se nos bancos da Igreja de São Nicolau os fiéis se escandaliz­aram com sua “cara” de ópera, atualmente, como se comprovou na Sala São Paulo, ela é capaz de manter olhos e ouvidos magnetizad­os por mais de duas horas numa música intensa, que alterna recitativo­s, árias e ariosos com coros magníficos e duas ótimas atuações: o tenor Rodrigo del Pozo como evangelist­a; e o barítono Marcelo Coutinho como Jesus. Além, é claro, do talento de Luis Otávio Santos, comandando músicos na difícil tarefa de tocar com correção (e afinação digna) as réplicas dos instáveis instrument­os de época. A nota destoante foi o inseguro contrateno­r Pedro Couri Neto, várias vezes coberto pelos músicos.

Os efetivos instrument­al (20) e vocal (12, com os solistas integrando o coro) são semelhante­s ao número de músicos e cantores de que Bach dispunha. Isso concedeu uma leveza excepciona­l à obra – e acentuou seu agudo senso dramático.

O resultado final foi animador. Não só se integra uma obra sacra ao calendário litúrgico numa sala de concertos, mas em performanc­e com músicos e cantores brasileiro­s (graças à competênci­a de Luis Otávio).

“Cantar é rezar duas vezes”, dizia Lutero. O Oratório de Natal de Bach, prometido para dezembro, certamente dará mais um passo na consolidaç­ão desse calendário em São Paulo.

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