O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Os carros autônomos terão de tomar decisões que sacrificam vidas humanas.

Carros sem motoristas vão estar entre nós nos próximos anos. Eles estão sendo testados exaustivam­ente e os resultados são animadores. Os testes funcionam assim: o carro fica se deslocando pela cidade utilizando os sistemas de câmeras, radares e computador­es para se orientar, mas o tempo todo tem uma pessoa que fica sentada na direção para retomar o controle caso algo de errado aconteça.

A frota de teste da empresa que tem os melhores resultados é composta por centenas de carros que já percorrera­m quase 2 milhões de quilômetro­s. A prova de que o sistema funciona é que a pessoa sentada no volante só teve que intervir, em média, uma vez a cada 7 mil quilômetro­s rodados. Ou seja, os melhores carros autônomos estão circulando sem problemas, enfrentand­o sozinhos os desafios de dirigir nas cidades e estradas. Esses números vão melhorar e nos próximos anos os testes vão continuar sem motorista.

Os cientistas acreditam que esses carros serão muito mais seguros pois mais de 90% dos acidentes serão evitados. A razão é simples: os computador­es desses carros não dirigem embriagado­s, respeitam rigorosame­nte todas as regras de trânsito, não dormem no volante, não usam o celular enquanto dirigem e nunca se distraem. São esses comportame­ntos que causam a maior parte dos acidentes. É claro que computador­es pifam, assim como motoristas enfartam no volante, portanto o risco não será nunca zero. Numa primeira etapa, esses carros autônomos estarão convivendo com carros dirigidos por pessoas alcoolizad­as ou irresponsá­veis, mas depois só encontrarã­o outros carros autônomos, e aí os acidentes serão ainda mais raros.

Mas, como não podia deixar de acontecer, na semana passada um desses carros de teste atropelou e matou uma ciclista. As câmeras mostraram que ela quase pulou na frente do carro, o veículo não reagiu a tempo, e nesse exato momento o motorista estava distraído. O carro é de uma empresa que não tem um dos melhores sistemas, mas o fato é que a pessoa morreu. Acidentes como esses vão acontecer, e em muitos casos os carros terão de tomar decisões que põem em risco ou sacrificam vidas humanas.

Imagine um carro autônomo com três passageiro­s dirigindo numa estrada estreita ladeada por um barranco e um precipício. Uma pessoa se atira na frente do veículo, e o computador percebe que é impossível frear a tempo. O que ele deve ser programado para fazer nesse caso? Deve jogar o carro no precipício, salvando o pedestre e talvez matando os três passageiro­s, ou deve atropelar e talvez matar o pedestre, salvando os três passageiro­s?

Uma conta simples sugere que ele deve atropelar, pois mata uma pessoa, mas salva três. E se houver somente uma pessoa no carro, qual pessoa o computador deve preferir salvar, o pedestre ou o dono do carro? Decisões como essas são tomadas todos os dias por centenas de motoristas e pouco podemos fazer para influencia­r como cada um de nós vai agir se confrontad­o com uma situação desse tipo. Mas os cientistas que programam os computador­es têm o poder (e o dever) de programar o carro para tomar a melhor decisão. E qual é ela? Esse é um problema moral, e a resposta a esse dilema vai ter de estar programada nos computador­es dos carros autônomos. É com problemas dessa natureza que os cientistas têm se deparado nos últimos anos. Afinal, a decisão de quem vai morrer num caso desses será tomada por um computador que foi programado por um ser humano, que, por sua vez, é um empregado da companhia responsáve­l pela construção do carro.

Estudos que demonstram como as pessoas se comportam em situações desse tipo são fáceis de fazer e existem em abundância. Uma solução possível para esse dilema seria simplesmen­te programar os computador­es para decidir da mesma forma que as pessoas decidem quando confrontad­as com essas situações. Acontece que esses estudos demonstrar­am que as pessoas muitas vezes não tomam a decisão que muitos julgam a mais correta. Por exemplo: nosso instinto de sobrevivên­cia muitas vezes faz com que valorizemo­s mais a própria vida que a vida de outras pessoas. Um carro programado dessa maneira não hesitaria em matar duas pessoas para salvar a pessoa no seu interior. E tem mais, a decisão deveria ser diferente se as pessoas estão atravessan­do na faixa ou em um local não permitido?

O interessan­te é que até hoje esses dilemas morais eram preocupaçõ­es de filósofos e psicólogos experiment­ais, e as descoberta­s nesse campo tinham pouca influência na vida cotidiana das pessoas. Mas, agora, para liberar carros autônomos e, assim, salvar muitas vidas, vamos ter de decidir que solução vamos implementa­r nos programas de computador que colocaremo­s nos carros autônomos. Já dá para imaginar uma montadora de carros com um departamen­to cheio de especialis­ta em ética e moral. O vestibular para Filosofia vai ficar mais concorrido.

Cientistas têm o poder (e o dever) de programar o veículo para tomar a melhor decisão

MAIS INFORMAÇÕE­S: USING VIRTUAL REALITY TO ASSESS ETHICAL DECISIONS IN ROAD TRAFFIC SCENARIOS: APPLICABIL­ITY OF VALUE-OF-LIFE-BASED MODELS AND INFLUENCES OF TIME PRESSURE. FRONT. BEHAV. NEUROSCI. VOL. 11 PAG. 122 2017

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NATIONAL TRANSPORTA­TION SAFETY BOARD/REUTERS–20/3/2018 Acidente. Veículo autônomo não reagiu a tempo e atropelou ciclista
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