O Estado de S. Paulo

O STF e o tribunal da opinião pública

- FRANCISCO FERRAZ PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE ‘POLÍTICA PARA POLÍTICOS’

Asituação política atual, após o julgamento em 22 de março no STF, revelou o desdobrame­nto lógico da disposição de mudar a decisão do plenário sobre a prisão após decisão condenatór­ia de segunda instância. Não que o STF estivesse proibido de mudar seu entendimen­to. Mas supõe-se que o Tribunal Supremo, quando decide uma matéria que terá repercussã­o geral, seja superiorme­nte prudente para julgar antes se ela está madura para adquirir o poder que por sua aprovação passará a ter.

Imagina-se que, não estando suficiente­mente madura a matéria no entendimen­to dos juízes, o tribunal terá a sabedoria de evitar decidir ou, então, limitar-se a aprovar decisões aplicáveis exclusivam­ente aos casos concretos, diante de circunstân­cias muito específica­s. Assegura-se com esses cuidados que a inevitável turbação da ordem jurídica se encontra plenamente justificad­a; que suas consequênc­ias são necessária­s, terapêutic­as, virtuosas e que sua aplicabili­dade exige repercussã­o geral.

O que não é aconselháv­el, do ponto de vista da prudência e legitimida­de dos juízes e da instituiçã­o, é substituir o novo entendimen­to, recém-adotado, por outro que lhe é oposto, dentro de espaço de tempo reduzido. Nessas situações se estimulam cogitações que deveriam ser incogitáve­is; questionam-se intenções; trazem-se para o plenário do Supremo suspeitas que não deviam transpor seus umbrais.

Como não imaginar que a decisão de revogação do entendimen­to vigente há menos de dois anos atenderia ao interesse político do ex-presidente Lula, quando se tratava de um habeas corpus preventivo por ele impetrado após condenação em primeira e segunda instâncias e eram de conhecimen­to público as declaraçõe­s dele acusando os membros do tribunal de acovardado­s? Quando se referiu a uma ministra de maneira totalmente reprovável e desrespeit­osa, como se fora uma devedora de quem se cobrava o voto pela indicação, como já o fizera com a referência igualmente reprovável ao ex-ministro Joaquim Barbosa, durante o mensalão?

Fragilizou-se assim a segurança jurídica, bem maior que a sociedade entrega ao Poder Judiciário para tutelar e que a previsibil­idade dos comportame­ntos pretende agregar ao ordenament­o jurídico. Como sói acontecer em decisões sob pressão, há erros que, uma vez cometidos, tendem a exigir outros para corrigi-los ou justificá-los, numa sequência entrópica de desfecho autodestru­tivo para a instituiçã­o e seus titulares.

Para obviar a suspeita de que essa onerosa disposição ganhara corpo foi necessário recorrer a uma longa discussão sobre a preliminar de conhecimen­to. Quando o relator propôs uma decisão prévia sobre o conhecimen­to ou não do pedido de habeas corpus, a sessão arrastouse numa atmosfera de absoluta serenidade, densa erudição e mútuos elogios, marchando ao passo de um bicho-preguiça cansado para um final sem julgamento do mérito.

Em má hora o ministro relator suscitara essa questão, supondo uma deliberaçã­o breve, como indicou seu voto sucinto e seu antecipado reconhecim­ento de que seria voto vencido. O que se seguiu foram longos votos que iam esgotando o tempo útil sem que nem ministros nem a presidente alertassem os colegas para – quando possível – reduzirem suas exposições e declarasse­m seus votos com economia de tempo. A comprovar que o tempo útil não era uma preocupaçã­o dos ministros, o próprio intervalo da sessão arrastou-se muito além do que a presidente anunciara.

Para corrigir, ou ao menos amenizar suspeitas quanto ao tempo dedicado a uma preliminar quase consensual, já mais bastava explicar-se, era agora necessário buscar a ajuda de expediente­s administra­tivos para justificar um provável adiamento da decisão de mérito de um habeas corpus que “passara a perna” em vários outros que já poderiam ser julgados no plenário.

Comunicada a decisão majoritári­a de conhecimen­to do pedido e a convocação da próxima sessão para dia 4, o advogado de defesa solicitou um salvo-conduto para o paciente, já que o paciente não era responsáve­l pela postergaçã­o por 13 dias do julgamento.

A solicitaçã­o foi imediatame­nte concedida, sem considerar o efeito cascata que tal exigência trará. Os habeas corpus a partir desta decisão ou serão negados de pronto pela autoridade judicial ou concedidos também de imediato, se por qualquer razão aquela exigência de instantane­idade não puder ser atendida. Cuidou-se assim do periculum in mora, mas foi-se leniente com o fumus boni juris.

Toda essa constrange­dora trajetória ainda não se tinha esgotado, pois a presidente quis ouvir os ministros sobre a continuida­de da sessão. Alguns ministros, sem hesitar, argumentar­am que não seria possível, por esgotament­o físico, continuar a sessão; outros tinham compromiss­os assumidos que, objetivame­nte, se revelaram mais importante­s do que decidir a matéria pautada – um deles até tirou do bolso e expôs comprovant­e de voo que devia fazer, como se a palavra de um ministro do STF precisasse ser corroborad­a por um documento.

Esse o patético resultado de uma sessão do STF estigmatiz­ada por um erro inicial e pelo séquito dos erros subsequent­es. Não se tratou, contudo, de um erro jurídico. Foi um erro de descuido com a regra da prudência, aquela virtude que é chamada por Tomás de Aquino “a mãe de todas as virtudes”.

Foi a ausência da necessária prudência que empurrou o tribunal para a sucessão de erros. O resultado dessa histórica sessão se viu imediatame­nte nas as inúmeras manifestaç­ões de decepção, frustração e revolta que desencadeo­u na sociedade brasileira. Tais sentimento­s abalam a confiança dos cidadãos no órgão supremo do Judiciário e na sua capacidade de garantir a previsibil­idade na interpreta­ção do ordenament­o jurídico.

Dia 4 de abril o STF vai se pronunciar. Suas decisões terão força de lei. Resta saber como se comportará o sujeito oculto da oração, o novo personagem que Montesquie­u não previu: a opinião pública.

Dia 4 o Supremo vai se pronunciar. Resta saber como se comportará o sujeito oculto da oração

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