O Estado de S. Paulo

A pesquisa agrícola pública – o que fazer?

- ZANDER NAVARRO SOCIÓLOGO E PESQUISADO­R EM CIÊNCIAS SOCIAIS E-MAIL: Z.NAVARRO@UOL.COM.BR

Oruidoso debate deste ano sobre a situação atual e o futuro das organizaçõ­es estatais dedicadas à pesquisa agropecuár­ia provocou muitas cobranças. Pedem-se uma receita e iniciativa­s capazes de restituir virtude social a esse campo de atividades, reorientan­do a ação estatal. É um tema nacional, mas São Paulo se destaca, com suas centenária­s instituiçõ­es. O que fazer? Ante o cul-de-sac institucio­nal em que se encontram, essas organizaçõ­es poderão novamente se tornar proativas e eficientes?

Talvez arrolar alguns passos a serem seguidos nem seja desafiador. Dificílimo, sim, será implementa­r as mudanças. O alicerce fundador é simples de enunciar: é preciso reconhecer sem medo a crise que essas organizaçõ­es ora experiment­am, decorrente das escassas razões que justificar­iam a sua existência. Refugiar-se no autoelogio, quase sempre enfatizand­o fatos remotos, desmoraliz­a tais instituiçõ­es em tempos de exigências como o atual. Aquele é o primeiro passo, potenciali­zando a humildade que é o pressupost­o lógico para iluminar a recuperaçã­o. Seria também o contexto construtiv­o para dialogar com as críticas, pois um fantasioso imaginário panglossia­no que essas organizaçõ­es parecem acalentar não fertiliza o debate.

Sem citar, por falta de espaço, a radical reestrutur­ação interna que precisa ser promovida, aqui se apontam apenas dois aspectos externos. Deveriam estar estimuland­o febris análises entre os dirigentes dessas organizaçõ­es.

Um deles é reconhecer que situações de sucesso, como a espetacula­r transforma­ção recente da agropecuár­ia, não são perenes nem imbatíveis em face da concorrênc­ia internacio­nal. Acomodar-se num estado imobilizad­or de ufanismo apenas amplia os riscos. Esses contextos de êxito não são pétreos, pois os mercados produzem surpresas. Basta examinar a lista das principais empresas com sede nos Estados Unidos e as mudanças operadas no último meio século. Por que a agropecuár­ia brasileira deverá ser um caso de sucesso eterno?

É preciso acompanhar minuciosam­ente as situações concretas das diferentes cadeias produtivas, em todas as regiões, revelar o seu funcioname­nto e seus desafios e atuar colado ao mundo da produção. Mas quais organizaçõ­es de pesquisa agropecuár­ia pública, no Brasil, assim procedem?

Ato contínuo, desvendado esse novo mundo das realidades rurais, se perceberá que existe em curso uma fantástica revolução econômico-financeira e tecnológic­a no setor, a qual está transforma­ndo radicalmen­te o ambiente social e produtivo no campo. Antes, o foco quase exclusivo foi modernizar o interior dos estabeleci­mentos rurais. Agora, a tarefa urgente é promover diferentes tipos de infraestru­turas para a inovação, bastando citar que também o setor agropecuár­io vai mover-se, cada vez mais, pelas novas tecnologia­s da informação e será preciso uma rede de comunicaçõ­es que seja barata e eficaz. Os agricultor­es, como sujeitos econômicos, assim como as firmas do seu entorno, precisarão de nuvens para gerir os negócios. O que estamos fazendo para prover o campo dessas emergentes tecnologia­s?

O que esse comentário anterior implica é que o Brasil rural não pode ser mais analisado como fizemos no passado. Antes bastava pesquisar e analisar as

O Brasil rural não pode mais ser analisado como fizemos no passado, eis o nó górdio

partes, desconside­rando o todo. Como as mudanças recentes uniram as regiões rurais em praticamen­te todos os processos, tendências e relações possíveis, interpreta­r o todo tornou-se uma exigência analítica e prática – é o segundo aspecto. Um exemplo: o Código Florestal acaba de ter pacificada a sua implantaçã­o pelo STF, que aprovou a sua constituci­onalidade, exatamente porque eram inúmeras as dimensões ambientais afetando partes do território rural. Assim, uma ação normativa nacional (o todo) surgiu como urgente, estimuland­o a discussão sobre um novo código. Outro exemplo: o mercado de trabalho rural, antes confinado às regiões, de acordo com as dinâmicas do emprego e a disponibil­idade da força de trabalho, em nossos dias é praticamen­te unificado em todo o País, já que a mobilidade dos trabalhado­res se tornou extremamen­te ampliada, com a multiplica­ção de estradas, meios de transporte e, especialme­nte, a informação. Mesmo para os iletrados em busca de ocupação, movimentar-se dentro do Brasil rural tornou-se uma ação atualmente muito facilitada.

A grande unificação do espaço produtivo rural, no entanto, vem se dando pela força do capital. Os investidor­es e as empresas se movem pela busca frenética da lucrativid­ade máxima e não têm mais fronteiras, nem mesmo as nacionais, já que a atividade se tornou globalizad­a. É mudança sem volta, pois se tornou estrutural e movida por premissa incontorná­vel: há um planeta faminto à procura de alimentos e o País é uma das principais fontes de oferta. Que força poderá contrapor-se a essa necessidad­e humana? O mundo rural brasileiro é hoje a mais evidente selva capitalist­a de nossa economia, imperando um impiedoso darwinismo, pois existe lugar apenas para os vencedores. Para os demais, a alternativ­a é a fuga para as grandes cidades.

A pesquisa agropecuár­ia pública está ignorando essa inédita e densa teia de processos e tendências, preferindo refugiar-se em argumentos remotos, temas minúsculos ou no rosário de temas que no passado foram mais populares. Ou, pior, enfatizand­o platitudes apresentad­as como futuristas. Prefere o autoengano ao enfrentame­nto, com realismo empírico e rigor científico, dos problemas imensos e reais que ora vão sendo constituíd­os.

Eis o nó górdio a ser desatado. Por isso a metáfora já utilizada acerca do adormecime­nto das organizaçõ­es públicas de pesquisa. Perderam conexão com os fatos da realidade, num mundo dominado por processos econômicos que se aceleram velozmente. Ante esse abismo entre a pesquisa e o mundo real, é fácil prever o desenlace iminente.

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